Para Xico Sá
O passarinho das crônicas do Rubem Braga está com o dia livre. Ou melhor, a década livre. Não aparece em narrativas há tempos. O lado bom da inatividade é a liberdade de poder pousar onde bem entende, não apenas no interior dos livros. Em meio a seu poético voo, nota um parque muito verde no centro da cidade. Dá início à aterrissagem para conhecer o local. Quando já está quase ao rés-do-chão, ouve uma voz, de forte sotaque sulino, dizendo:
— Te abanque, índio velho. Vamos charlá…
É um senhor corpulento, de generosas barbas negras, chapelão, bombachas, e botas altas. O passarinho das crônicas do Rubem Braga, sempre muito gentil, não iria negar o convite do Analista de Bagé para um bate-papo. Desce mais e se acomoda no encosto do banco de madeira.
— Aceita um mate? — diz o gaúcho.
— Ah, não. Obrigado. Só vou de água.
— Pues, desembucha. Tu é, por um acaso, aquele passarico dos causos do Braga, tchê?
— Eu mesmo.
— Bah, quem gosta de aglomeramento é mosca em bicheira. Foi por isso que tu veio pará num parque?
— Não, não. Na real, depois que começaram aqueles textões sérios na internet, lirismo e humor foram banidos das crônicas. Passarinho do Rubem Braga então, ninguém nem mais fala. Daí, agora, de sábado a sábado, estou em ano sabático. Saio voando por aí, sem destino.
— Epa. Opa. E por que a avezinha buenacha pensa que tô por aqui?
— Ah, é verdade, você é do humor!
— Sou e sustento. E te digo más: pues nesse banco, juntei a fome com a vontade de comê costelão.
— Como assim?
— Ah, o povo das crônicas veio pra cá. Tudo pela hora do aposento e do crédito consignado. Tão por essas alamedas, a Velhinha de Taubaté, o Cego de Ipanema, Rosamundo, Ed Mort, Primo Altamirando. Só que mais largados do que piá sem alpercata em dia de geada.
— Gente!
— Entonces, trouxe minha recepcionista, a Lindaura, que apraza as conversações com cada gaudério. Banco de praça virou divã freudiano. Mas o pelego, não largo. Vive mais grudado nos meus pés do que agiota em carteira de inadimplente.
— É um belo serviço o seu, sabe? Na atual conjuntura, nós, os cancelados, precisamos muito de apoio psicológico.
— E alguns de joelhaço…
— Sério?
— Passarico, tu conhece o Sobrenatural de Almeida?
— Aquele das crônicas do Nelson Rodrigues? Um fantasma responsável por tudo de ruim que acontecesse contra o Fluminense?
— Pues, é esse bagual mesmo! Diz que é um tal de antiético, mas, pra ti, eu conto. O Almeida tá sempre no parque, veio prosear comigo dizendo que era assombração.
— Ai, ai.
— Comecei a limpar as unhas do pé com um facão. Falei: quer dizer que o estancieiro pensa que é fantasma? Ele vai e dá a confirmação.
— E aí?
— Peguei a cuia.
— Entendi. Ofereceu chimarrão pra melhor o vínculo com o paciente.
— Oigalê! Eu apliquei uma pechada de cuia no escutador de vanera da alma do outro mundo, isso sim.
— Deus do céu…
— Ah, na hora, deixou de ser visagem pra ser vivente!
Nesse momento, Lindaura vem na direção dos dois. Conduz pela mão uma senhora idosa, mas de expressão muito jovial, olhos vivazes. O Analista de Bagé diz ao passarinho:
— A prosa tá tri legal. Mas agora é a vez da consulta da Tia Zulmira. Te some da minha frente nos próximos 50 minutos, bah!