Flip fora da caixa

Cronista imagina uma Flip alternativa com mesas animadíssimas, convidando cães, objetos e comidas para debater literatura e sociedade
Ilustração: FP Rodrigues
30/07/2025

E se, neste ano, a Flip decidisse inovar? Cansada de debates urgentes sobre o apocalipse climático, o genocídio em tempo real e a falência moral da Ética, a curadoria resolvesse apostar no que realmente importa: mesas temáticas disruptivas. A literatura? Talvez aparecesse.

Mesa 1 – Bardos caninos: o uivo como forma de protesto
Convidados:
• Rex, o pug poeta
• Belinha, influenciadora literária pet
• Um vira-lata caramelo, representando a massa

Tema central: a marginalização dos autores que se expressam em forma de latido. Debates sobre a hegemonia felina nas residências de intelectuais. Leitura de prosa poética ganida.

Mesa 2 – Literatura rupestre e memes em cavernas: o spleen de Lascaux
Convidados:
• Grunh, artista paleolítico
• Um antropólogo sem senso de humor
• Um professor de linguística que acredita que emojis são uma evolução cuneiforme

Discussão central: se uma pedra cai no chão e ninguém a entalha, ela ainda é literatura?

Mesa 3 – Autoficção de objetos: memórias de um escorredor de louça
Convidados:
• Uma chaleira
• Um fone de ouvido wireless
• O micro-ondas que participou de todos os episódios de MasterChef

Moderadora: Alexa

A mesa trataria de temas delicados como a obsolescência programada, invisibilização doméstica e a crise de identidade entre utensílios de plástico e inox.

Mesa 4 – Distopias imobiliárias: crônicas do aluguel em São Paulo
Convidados:
• Um corretor de imóveis com vocabulário distópico
• Uma inquilina que paga 80% do salário em aluguel e os outros 20% em terapia
• Oscar Niemeyer, holograficamente convidado para opinar sobre quitinetes de 12m²

Debate: como o preço do metro quadrado é, na verdade, um projeto narrativo de terror psicológico. A metáfora da geladeira embutida como prisão existencial poderia ser um segundo veio de conversas.

Mesa 5 – Slam gastronômico: quando a farofa é subversiva
Convidados:
• Um empadão militante que se recusa a ser fatiado
• A última colher de arroz que sobreviveu ao 8 de Janeiro no STF e agora escreve ensaios sobre violência institucionalizada
• Um morango do amor que largou tudo para fazer spoken word em docerias alternativas

Mediação: Pedro Bial e um pote de manteiga

Proposta: performances poético-culinárias em que receitas e cardápios viram manifestos de resistência. Discussões sobre o lugar da farofa no cânone, o silenciamento histórico do vinagrete e o bolinho de chuva como forma de nostalgia anticolonial. Ao final, todos os participantes seriam convidados a degustar os manifestos fritos na manteiga.

Mesa 6 – Literatura em horários de ônibus atrasados: o conto como forma de espera
Convidados:
• Uma idosa que escreveu seu romance de formação, em três volumes, entre Itaquera e o Largo da Batata
• Um cobrador aposentado que redige aforismos em volantes da mega-sena
• O motorista da linha 775P-10, que leu Grande sertão: veredas durante um congestionamento na rodovia Raposo Tavares

Mediação: Rubinho Barrichello

Discussão: o papel das filas, atrasos e baldeações como estruturas narrativas. Outra vertente poderia analisar o ônibus enquanto espaço de formação literária coletiva e o motorista como editor independente. Sarau com microfone aberto para narração de obras escritas em encostos de assentos.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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