O cronista Carlos Castelo nasceu em Teresina. Quando o obstetra disse “bem-vindo ao Piauí”, ele reagiu de forma incomum para um recém-nascido: em vez de chorar, deu uma sonora gargalhada. Viveu até os dois anos no Meio Norte, e depois se mudou com a família para São Paulo.
Seu pai, um experiente advogado, sem encontrar emprego na Pauliceia, precisou trabalhar como frentista de posto para garantir comida na mesa. Durante algum tempo, Carlos foi alimentado com refeições pouco adequadas para uma criança. Só podiam comprar o mais barato, então, acabavam comendo sempre feijoada em lata.
— Ei, não exagera. Não era toda hora.
Sou um narrador onisciente, com acesso total à sua história. Estou apenas contando o que sei. Se há ajustes a fazer, deveriam ter sido feitos antes de eu colocar as mãos no texto.
— Concordo, mas a verdade é que eu só comia essas coisas quando a situação apertava. Minha mãe e minha avó sempre davam um jeito de preparar algo mais saudável.
Mas eu sei de tudo. Sei o que você pensa, sente e faz, além de ter acesso ao passado, presente e futuro da sua narrativa. Isso me permite ter insights que você talvez desconheça.
— Sou escritor, sei o papel de um narrador onisciente.
Não cabe a você corrigir o que narro, nem questionar minhas escolhas. Continuando… Aos seis anos, Carlos foi estudar no Grupo Escolar Experimental da Lapa. Teve muitos problemas de socialização e, dia sim, dia não, fugia da escola para desespero da pedagoga.
Com nove anos, o menino já havia escapado mais vezes do que qualquer outro aluno. Certo dia, durante uma prova de matemática, burlou o bedel e foi andar de carrinho de rolimã.
— Peraí, nunca andei de carrinho de rolimã, eu tinha uma Caloi!
Já expliquei: as nuances são minhas. Se eu falar que você andou de carrinho de rolimã, comeu feijoada em lata, é assim que será.
— E se eu disser que o narrador muda as histórias só para deixá-las mais interessantes?
Quem pode contar melhor sobre você? A criança que estava lá e mal entendia o mundo, ou aquele que vê tudo de cima?
— Talvez quem viveu saiba coisas que você nunca vai descobrir. Tipo a textura e o cheiro da feijoada em lata. Só sabe quem experimentou.
Preciso seguir… Então, o futuro cronista Carlos Castelo, ao completar dez anos…
— Espera, para! Se é tudo autoficção, posso pedir uma coisa? Me deixa fugir, só mais uma vez. Agora, para fora do seu texto.
Quer sair fora, é? Vai na sorte, então.
— Fui!
Depois do maldito fluxo de consciência do James Joyce é isso aí: qualquer um acha que pode bagunçar a narração. Preguiça!