Alô, Clarice:
Mal comecei a ler o livro Todas as cartas e, logo no início, dei como uma missiva dirigida a Tania, Willliam e Marcia Kaufmann, respectivamente sua irmã, cunhado e sobrinha. A data é 7 de fevereiro de 1941.
A importância dessa coletânea epistolar já se mostra imediatamente ali, naquela página 120.
Nessa sua carta, em um determinado momento, você diz de forma descontraída:
Pra variar, vou almoçar no Praia Bar. Ah, esqueci, vou tomar banho antes…
Você se lembra? O Praia Bar ficava no Flamengo, próximo à rua em que morava no Catete. Manuel Bandeira disse a Rubem Braga que, certa vez, a encontrou ali. O cronista então transformou o episódio numa crônica em que rememora o dia em que o poeta saiu do Praia Bar e a viu passando na calçada com seu noivo, Maury.
O encontro com Bandeira ocorreria tempos depois da carta de 1941 para Tania, William e Márcia. Mas perceba como o futuro já pode estar delineado nas palavras que imprimimos no passado.
Para refrescar sua memória, transcrevo abaixo a crônica O poeta e os olhos da moça, de Rubem Braga, publicado em 31 de maio de 1981.
Conversa vai, conversa vem, eu disse um nome de mulher. O poeta me confessou que há muitos, muitos anos, tem vontade de fazer um poema sobre uma história que ele teve com essa mulher — a que chamaremos Maria. Espanto-me: não sabia que o poeta tinha tido alguma história com Maria. Ele ri:
— Não pense que eu tive um caso com ela. Foi apenas uma impressão minha, foi uma coisa tão subjetiva — mas inesquecível. Tanto assim que vivo perseguido pela vontade de escrever um poema sobre aquele momento. Isso aconteceu há uns dez anos, e até hoje não me senti capaz de transformar aquele instante em um poema. Pode ser que esse poema venha de repente, pronto do começo ao fim; isso já tem me acontecido. Mas vou contar a história.
Eu estava no Praia Bar, ali no Flamengo, sozinho, com uma tristeza danada, por causa de outra mulher. Estava desesperado, mas principalmente triste, com uma tristeza sem fundo nem remédio.
Em certo momento paguei a conta e saí. Quando vou pisando na calçada me encontro com Maria, que vem de braço dado com o noivo. Meus olhos entraram diretamente nos seus. Meus olhos, com toda a minha tristeza, toda a minha alma desgraçada, entraram de repente nos seus, mergulharam completamente neles. Ela se deteve um instante — eu só via aqueles olhos verdes — e me recebeu como se fosse uma piscina. Tenho a certeza de que ela recebeu a minha alma ferida, de homem desprezado, dentro da sua alma distraída e feliz de moça que passeia com o noivo. Cumprimentei os dois vagamente, segui pela rua tonto, mas apaziguado.
Contei essa história do poeta a Maria, muitos anos depois. Ela beliscou o beiço, tentando se lembrar: “No Praia Bar? Quando foi? Não me lembro…”
E ficou me olhando admirada, com seus olhos de piscina.
Foi há muito tempo que escrevi esta crônica, há quase 30 anos. Na ocasião eu não quis dizer o nome dos personagens. Hoje ambos estão mortos. O poeta era Manuel Bandeira; a moça Maria, noiva, chamava-se Clarice Lispector.
No extenso conteúdo das 957 páginas de Todas as cartas, encontramos mensagens assinadas por você para Fernando Sabino e Lúcio Cardoso, Erico Verissimo, João Cabral de Melo Neto, Lygia Fagundes Telles, Murilo Rubião. Leitores, biógrafos, pesquisadores, professores terão muito a ganhar com a nova edição ampliada do seu arquivo literário.
No entanto, para mim, Clarice, não é em tais revelações que está a essência de sua vasta correspondência. É na miudeza das notícias do dia a dia, a parentes e amigos, que há bem mais de você. São nesses escritos que se nota porque, um dia, Bandeira mergulhou na piscina de seus olhos.
Um abraço e saudades,
Carlos