E-mail ao pai

A tristeza e a indignação de Kafka ao ser cancelado nas redes, acusado de frequentar bordéis e consumir pornografia
Ilustração: Thiago Lucas
07/02/2024

Querido pai: você me perguntou por que eu afirmo ter medo de você. Naquele momento, não soube responder.

Agora, volto com esta mensagem tardia para, afinal, elucidar melhor os fatos. Realmente, acreditei nisso por um bom tempo. Hoje, entretanto, as coisas mudaram. Meu grande temor é outro. Não mais uma figura paterna egoica, que nem meus livros lia. Mesmo eu os deixando em locais onde todos poderiam notá-los. Sim, pai, tais fatos não me machucam mais.

Há um bom tempo, sou um escritor universal, lido em centenas de idiomas e tema de milhares de teses de pós-doutorado literárias pelos quatro cantos do planeta. Borges, Beckett, Camus, Saramago, e tantos outros autores, não produziriam suas experimentações estéticas sem as minhas.

Hollywood já lançou longas-metragens baseados em obras de minha lavra. E veja só a ironia: o termo kafkiano virou até linguagem corrente.

É, o seu Franz, o funcionariozinho de corretora de seguros, o depressivozinho da família, como se diz no jargão do presente, bombou. E, sem querer ser egocêntrico como o senhor, usando para isso apenas uma barata.

Querido pai, sempre soube que viver não é apenas um jogo de paciência. É muito mais. Na verdade, sem uma enorme dose de tolerância não se atravessa nem a rua Karlova, no centro de Praga. Contudo, preciso desabafar algo para me tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais leves para ambos.

Cancelaram-me nas redes sociais. A justificativa para o ato foi, sem provas conclusivas, anunciarem que eu era frequentador de bordéis e consumia pornografia.

Como eu dizia, é essa anulação minha junto ao público o que mais me angustia na época atual. Na verdade, a aflição talvez se origine mais de não a compreender…

Senão, vejamos, pai. O senhor, com certeza, não sabe quem foi o escritor Jean Genet. Então, lhe conto. O sujeito teve uma vida inteira marcada por prisões e envolvimento com o submundo do crime.

No nível dele está o tal do Charles Bukowski. Argh! Era conhecido por abuso de álcool. Os contos de sua autoria são praticamente uma sucessão de porres, sexo, vômito, ressaca e novos pifões.

E o que dizer de Hunter S. Thompson? Esse escrevia sobre suas experiências com drogas psicodélicas. Adorava ainda disparar uma pistola contra os que se aproximavam de sua residência.

Pergunto, pai: por acaso, cancelaram Genet, Bukowski e Thompson? Não e não! Ninguém sequer imaginou a possibilidade de os excluir de nada.

Então, por que eu? Por acaso, serei o Golem da devassidão?

Bem que eu pedi ao Max Brod para queimar todos meus originais quando eu não estivesse mais aqui…

Pai, afasta de mim esse cálice!

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

Rascunho