De: Terra. Para: Marte.

A paciência da Terra com os seres humanos está por um fio e a vingança será avassaladora
Ilustração: FP Rodrigues
11/06/2024

Marte, meu caro:

Espero que esta mensagem o encontre bem, com suas calotas polares intactas e as tempestades de poeira controladas. Por meu lado, estou passando por enormes perrengues. Achei que era hora de compartilhar um pouco do meu fardo com você, prezado vizinho, e talvez obter algum conselho sobre como lidar com uma espécie atroz que parece determinada a me destruir.

Há milênios, acolhi os humanos em meus braços. Ofereci de tudo: ar para respirar, água para beber, solo fértil para cultivar e recursos inestimáveis para explorar. Criei um ambiente perfeito para que florescessem e, no início, foi um excelente relacionamento. Eles aprenderam a aproveitar minhas dádivas, cresceram em número e conhecimento, e construíram civilizações incríveis. Que dias de glória!

Mas, Marte, no popular: a coisa miou. O reconhecimento que os humanos deveriam ter por mim se transformou em caos e exploração. Cavaram minhas entranhas em busca de petróleo e minerais, poluíram meus rios e oceanos, e encheram minha atmosfera com gases putrefatos. As florestas, vulgo meus pulmões, estão sendo reduzidas a pó de traque, e as criaturas que inventei, desaparecendo a toque de caixa. Você pode imaginar o quão doloroso é assistir ao meu próprio desmantelamento, dia após dia.

O Homem fala de progresso e desenvolvimento, mas à custa de quê? Eles criaram geringonças que cospem fumaça, fábricas que despejam resíduos tóxicos e veículos que emitem gases que sufocam lentamente. O aquecimento global é um fato, Marte, e estou começando a sentir os efeitos na minha atmosfera. Os polos derretendo, os mares subindo, e os padrões climáticos se tornando totalmente imprevisíveis.

Mas a desconsideração, Marte, é ainda o que mais me deprime.

E digo mais: os seres humanos estão muito a fim de invadir sua praia (brincadeira, brincadeira…). Especialmente aquele beócio do Elon Musk. Sim, ele olha para você, meu irmão vermelho, com olhos cheios de ganância. Está desenvolvendo tecnologia para enviar naves e estabelecer colônias em sua superfície. Como se já não tivesse causado danos suficientes aqui, planeja estender suas trapalhadas ao cosmos.

Por outro lado, você sabe, nunca fui bundona. Tenho planos na manga. Já ouviu falar dos meus terremotos, furacões, erupções vulcânicas, pandemias, não é? Pois saiba que são apenas um aperitivo do que sou capaz. Minha paciência está por um fio, e estou prestes a mostrar a essas pulguinhas safadas que traição tem um preço. Pensam que podem continuar me ferrando sem consequências? Estão muito enganadas. Não vai ser, aliás, a primeira espécie que mato na unha. Lembra do mamute, do dodô, do tigre-de-dentes-de-sabre?

Você sempre foi um ótimo ouvinte, e por isso sempre lhe escrevo. Espero que nossa comunicação continue ainda por trilhões de séculos.

Cuide-se bem, meu astro favorito. E esteja preparado para o dia em que os bípedes derem as caras em seus domínios. Vão chegando de mansinho e, quando menos se espera, já espatifaram a Praça dos Três Poderes aí de vocês. Fica esperto, irmão.

Um abraço do tamanho de Júpiter,

Terra.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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