Em 23 de dezembro de 1993, fui apresentado ao escritor e jornalista João Antônio pelo amigo em comum, Mylton Severiano, o Myltaínho.
Jantamos no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Daquela noite em diante, passei a fazer parte do seleto grupo de missivistas em torno do mestre, autor de Malagueta, Perus e Bacanaço.
Até o seu falecimento, em outubro de 1996, recebi várias cartas de J. A.
Nelas, havia um pouco de tudo: revolta pelo estado de ignorância nacional, ensinamentos a um jovem escritor, comentários sobre seus autores do peito e até pedidos para que eu telefonasse à sua mãe, dona Irene.
Sempre retomo a leitura desses escritos. A missiva publicada aqui completou 29 anos. Gosto dela, em especial, pela incondicional “amizade-quase-tutor” do contista. E pela insistência de J. A. para que eu permanecesse em meu “domicílio”, no caso, o humor — e eu o obedeci.
Em 1986, J. A. lançou Abraçado ao meu rancor, em que instila fel sobre o ofício de escritor num país regido pelas determinações do mercado.
Esta correspondência de 1994, nunca divulgada publicamente antes, não deixa de corroborar tudo o que está no livro.
Copacabana, sábado, 03/09/1994
Castelo. Prezado.
Não estou ficando mais zen, nem nada. Estou ficando furioso porque falam, repetidamente, em me pagar mal.
Sinto ternura pelos jovens, quando sentia, quando jovem, tesão pelas coroas. Atração forte. A forma poderá não ser machadiana, mas o pensamento é da família de Machado: “…e por fim a esperança, que é a meninice do mundo”.
Se a sua queda é o humor, fique nela e que nada o afaste de sua inclinação. O seu sofrimento e luta serão grandes, pois, este é um país escroto vivendo sob o ignorantismo (vá ao dicionário e procure saber o que é ignorantismo, se já não sabe). É um filho das ditaduras, das burrices, da intolerância e do obscurantismo. Ou melhor, o ignorantismo é neto da burrice; filho é o obscurantismo. Já estamos na fase segunda geração, a ignorantista. Não saia, no entanto de sua personalidade, aquela que o realize e que fará com que v. se sinta v. mesmo. Não arrede pé daí. Fique no seu domicílio, por mais sofrido.
Telefone sempre à minha mãe, dona Irene. Elogie muito o filho primogênito dela, diga que sou um valor das letras pátrias, um caso de talento inefável, um senhor texto, uma senhora cultura e outras loas. Mesmo que v. minta há de ser virtude. Haverá um humanismo porejante nessas mentiras e, de assim, havemos de ficar mais amigos. Dei muito trabalho aos meus pais e sempre fui um desgarrado.
Lembre-se que nada mais sério que o humor. É a quinta-essência da seriedade. Acima dele, só o pensamento, em termos filosóficos. E acima de acima (a meu pobre entender) só a poesia. E acima, mais acima, a profecia.
Como ajudá-lo, se este Rio é um miserê, enquanto mercado? Fale ao Myltaínho. Mas fale também a Geraldo Galvão Ferraz. Fax: 856-2292 e Fone: 856-2257 aí em São Paulo, no “Jornal da Tarde”, no caderno cultural dos sábados. Ele é amigo também do Myltaínho. Ele é o filho da Pagu (Patrícia Galvão). Fale em meu nome. Ele é um grande sujeito e ama a cultura.
Estarei em S. Paulo para várias conferências de 18 a 24 deste setembro. Telefone aí para a Editora Bertrand Brasil: 285-4941. Não sei ainda em que hotel ficarei. Ou telefone para minha mãe, ela dará minha direção aí. Havemos de nos encontrar. Um abraço ao Geraldo e ao Myltaínho.
Releia ou leia pela primeira vez — com muitos modos e com pausa — todo o Machado de Assis, principalmente os escritos por ele depois dos quarenta anos. E faça isso de cinco em cinco anos. Ele é um reeducador dos nossos anseios.
Abraços,
João Antônio