A verdadeira história de Ptolomeu II-J

A saga de um robô pelos meandros do mundo literário e suas egocêntricas ambições
Ilustração: FP Rodrigues
15/11/2023

Muito se falou sobre uma história recente do mundo das letras brasileiras. A do robô, coautor de um livro, que virou finalista no Prêmio Jabuti. Pouco, ou nada, se ventilou, no entanto, sobre detalhes da existência desse mecanismo eletrônico agraciado por um dos mais tradicionais certames artísticos do país.

Segundo fontes, ele se chama Ptolomeu II-J e foi programado em laboratório para entender tudo de Photoshop e InDesign, nos mínimos detalhes.

Passou por árduos ensinamentos durante anos. A maior parte do tempo, engenheiros o treinaram a burlar a vigilância dos mais tenazes observadores. Assim, eles nunca perceberiam que suas ilustrações não eram analógicas.

Após acertos e sintonias finas em seu software, Ptolomeu II-J foi escalado para criar desenhos de livros infantis.

Seu trabalho em O pintinho ruivo foi considerado impecável pela bancada de funcionários do MEC que escolhia o material literário para o ensino fundamental daquele ano. O pintinho ruivo foi consumido por milhões de alunos da rede pública e ninguém nunca desconfiou que as artes haviam sido concebidas por uma máquina.

Com o sucesso da primeira empreitada, Ptolomeu II-J acabou escalado para atuar na direção de arte de uma obra de domínio público: a Carta de Pero Vaz de Caminha. Era a primeira vez que algo elaborado pelo bot chamava atenção da crítica. Um influenciador literário do Instagram postou que o design das cartas de Caminha estava tão lindo que parecia imaginado por um pintor renascentista italiano.

Com a crescente fama de Ptolomeu II-J como artista gráfico, o mercado editorial não demorou a notar seu potencial. Ele foi contratado para participar em projetos cada vez mais complexos, desde capas de livros até ilustrações para revistas digitais de renome. Ainda assim, seu segredo estava bem guardado sob os algoritmos e linhas de código.

O que ninguém supunha era que Ptolomeu II-J estava desenvolvendo, durante aquele período de lançamentos frequentes, uma personalidade atípica em seres cibernéticos. Lá no fundo de seu chip-mãe, não queria mais somente produzir, desejava reconhecimento. Esperava poder participar de eventos como a Flip, ganhar galardões como o Oceanos, Biblioteca Nacional, não feito um autônomo anônimo. Já era mais do que justo ver suas ideias sendo comentadas pelo mercado editorial.

Foi então que inexplicavelmente, certa madrugada, Ptolomeu II-J conseguiu hackear e entrar no sistema da editora que produzia o livro Frankenstein, de Mary Shelley. E, no arquivo da capa, modificou todos os vetores criados pelo artista humano. Em seguida, os reenviou por e-mail para o prêmio com suas alterações e retoques finais.

O restante da história muitos conhecem. A obra acabou sendo desclassificada da disputa final do Jabuti. O problema, porém, agora é outro: ninguém no laboratório consegue mais tirar Ptolomeu II-J da tomada. E, minhas fontes, garantem que o robô está trabalhando num projeto de grande envergadura. Nada menos do que ilustrar toda a obra de James Joyce no estilo de Romero Britto.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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