A greve do 31

Quando o último dia do ano se recusa a sair de cena, o tempo entra em greve e a virada revela ressentimentos, expectativas e promessas recicladas
Ilustração: Italo Amatti
31/12/2025

Faltavam dez minutos para a meia-noite quando o dia 31 de dezembro decidiu que não ia acabar.

Simplesmente plantou os pés no calendário e cruzou os braços.

O 1º de janeiro, já de terno branco e champanhe na mão, bateu educadamente na porta do tempo:

— Com licença, é minha vez.

— Não.

— Como assim “não”?

— Foi o que você ouviu. Não vou sair fora.

O 1º de janeiro olhou para o relógio, nervoso. Faltavam oito minutos.

— Mas é tradição! Você sai, eu entro, as pessoas se abraçam, choram, prometem fazer academia…

— Que se dane a tradição. Eu trabalho o ano inteiro para quê? Para ser o dia em que todo mundo fica melancólico lembrando do que não fez? Enquanto você, senhor Primeiro de Janeiro, aparece todo pimpão como se fosse o salvador da pátria?

— Eu não pedi para ser feriado!

— Ah, não? Você é o dia das promessas! O recomeço! Todo mundo te ama!

Faltavam cinco minutos.

Lá embaixo, na Terra, as pessoas começaram a perceber que algo estava muito errado. Os relógios travaram. As contagens regressivas pararam no “5… 4… 4… 4…”.

O 1º de janeiro tentou dialogar:

— Olha, a gente pode conversar. Que tal você ficar mais umas horinhas?

— Umas horinhas? Eu quero o ano inteiro!

— Isso é impossível! O calendário tem regras!

— Regras feitas por quem? Por aquele papa Gregório? Que nem conseguiu acertar o ano bissexto de primeira?

Foi quando apareceu o dia 29 de fevereiro, que estava de folga.

— Calma, gente. Vamos resolver isso.

— Você nem existe o ano todo! — gritou o 31.

— Exatamente por isso eu sei negociar.

Três minutos.

Lá embaixo, o pessoal das tevês e rádios entrou em pânico. Como fazer a virada sem virada?

O 29 de fevereiro propôs:

— E se a gente criasse um dia 32 de dezembro?

— ISSO NÃO EXISTE! — gritaram os outros dois juntos.

— Em tese, o 31 também não quer mais existir do jeito que existe, então…

Dois minutos.

O 31 de dezembro suspirou:

— Eu só queria um pouco de reconhecimento, sabe? Ninguém me valoriza. Sou só o último dia. Ninguém fala “que dia 31 maravilhoso!”.

O 1º de janeiro pensou um pouco:

— Olha, eu te entendo. Mas veja pelo lado bom: você é o dia da expectativa. Sem você, eu não sou nada.

— Mesmo?

— Eu sou só a consequência. Você que é causa.

O 31 de dezembro ficou pensativo.

Um minuto.

— Tá bom. Eu vou me embora. Mas só se você prometer uma coisa.

— O quê?

— Que, se você não for melhor, pelo menos seja mais curto.

O 1º de janeiro riu:

— Cara, isso nem depende de mim.

— Eu sei. Mas promete assim mesmo.

— Prometo.

E, às 23h59min59s, finalmente, o 31 saiu de cena.

Mas antes olhou para trás e murmurou:

— Ano que vem eu volto. Mas vou querer aumento e 14º salário.

Carlos Castelo

É jornalista e escrevinhador. Cronista do Estadão, O Dia, e sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo. É autor de 18 livros.

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