Nos caminhos da leitura

Neste espaço, falaremos de leitores e leituras; compartilharemos cenas de um Brasil que lê
A Biblioteca Comunitária Caminhos da Leituras, no bairro de Parelheiros, em São Paulo
27/10/2020

27/10/20

Eu conhecia o Rascunho, mas não conhecia o Rogério Pereira pessoalmente, até que em 2018 fomos convidados para o seminário Bibliotecas em Diálogo, em Buenos Aires. Foram muitas conversas sobre nossos fazeres literários: ele autor, eu uma ativista da leitura.

O reencontro não demorou: ao saber que Rogério e Luiz Ruffato eram amigos, tratei de convidá-los para o aniversário de nove anos da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, de Parelheiros, extremo sul da cidade de São Paulo. E no dia 6 de julho de 2018, quartas de final da Copa do Mundo, na tela de um computador com conexão instável de uma pequena biblioteca instalada na extensão de um cemitério, assistiríamos ao Brasil perder da Bélgica e ganhar um grupo de adolescentes e jovens leitores.

Desde lá nossas estradas seguem se cruzando com livros, jornais, leituras, escritas, leitores/as. Convidei Rogério para participar do projeto Literatura e Direitos Humanos: para ler, ver e contar  desenvolvido em parceria com a Rede LiteraSampa, indicando 10 obras literárias que todos/as jovens deveriam ler, e escrevesse uma carta justificando suas escolhas. Sua carta linda, relida, sentida e estudada por um grupo de 16 adolescentes provenientes de bibliotecas comunitárias, já estampou as páginas da Rascunho. Outros quatro autores/as e mediadores/as de leitura fizeram o mesmo.

Agora é a minha vez! Estreio neste espaço, compartilhando um trecho da carta que escrevi para esses jovens, comentando sobre as obras indicadas por mim. Com apoio do governo alemão, conseguimos comprar todos os livros para as bibliotecas da LiteraSampa. Subvertendo as perspectivas mais e menos fatalistas, um grupo de jovens segue se encontrando, agora remotamente, para conversar sobre livros e leituras. Já leram mais de trinta livros desde o início do projeto (2019) e se encontraram com vários autores. Há dados para comemorar. Portanto, mensalmente trarei uma crônica sobre cenas do Brasil que lê.

Caros jovens,
Caras jovens

Escrevo-lhes depois do reconhecido sucesso de minhas indicações. Eu sei que vocês nunca se esquecerão do dia em que estiveram com Aline Bei, conversando sobre O peso do pássaro morto.

Provavelmente vocês não esquecerão da tarde em que nos espalhamos pela sala da Residência do Cônsul da Alemanha, com Ana Maria Gonçalves e seu Um defeito de cor e os Contos crespos do Luiz Cuti. Trocamos palavras, olhares, abraços, desejos para nós e para nossa gente. Falamos da escrita como lugar de resistência e existência. É incrível como palavra é casa! Nos abrigamos nelas. Nos sentimos à vontade. Chegamos a sonhar que Ana Paula Maia e o premiado Assim na terra como embaixo da terra se juntassem ao grupo.

Assim como eu nunca me esqueci das imagens televisivas da derrubada do muro de Berlim, é possível que vocês carreguem em suas lembranças a comemoração dos 30 anos da Reunificação da Alemanha, celebrada em São Paulo, na Casa das Rosas. Fomos convidados/as a participar da festa. Fomos para lá com “livros que nos ajudaram a derrubar muros”. Coletivamente, vocês escolheram o Catálogo de perdas do João Anzanello Carrascoza e da Juliana Monteiro Carrascoza. Um livro de contos adultos, com imagens fotográficas que contam histórias.

Luiz Ruffato, renomado escritor, é um parceiro querido das bibliotecas comunitárias. Vocês leram e gravaram em suas vozes o discurso que ele fez na abertura da Feira de Frankfurt em que o Brasil foi homenageado (2013). Concordamos muito com suas denúncias sobre as desigualdades no acesso ao livro e à leitura no Brasil. Para este nosso projeto, indiquei A cidade dorme. Aposto em boas conversas.

Alguns de vocês participaram da oficina de Escrevivências com Conceição-rainha, grande homenageada do Prêmio Jabuti 2019. Dela sugeri a leitura de Olhos d’água. Lembrei da leitura de A gente combinamos de não morrer, feita coletivamente por mim e um grupo de adolescentes, depois que um jovem ativista tirou sua própria vida. Repetimos esta frase muitas vezes. Há muitas mulheres fortes nos contos de Conceição.

Enquanto escrevo esta carta, chegam notícias de elogio à ditadura brasileira, de perseguição a ativistas. A democracia e a liberdade voltam a ser ameaçadas no Brasil. Falamos disso ao conversar sobre o livro A resistência, de Julián Fuks, que a partir de espaços íntimos de uma família, aborda a ditadura na Argentina. Desde que o li, segui indicando o livro para pessoas que não abrem mão de discutir o destino do seu país; pessoas que não banalizam a violência e as violações de direitos, sejam grandes ou pequenas.

Indiquei ainda uma autora da zona sul de São Paulo: Maria Vilani. Filósofa, educadora e autora de vários livros, costuma ser apresentada como “a mãe do Criolo”. Se for considerar as ordens das coisas: “O Criolo é filho dela”. A minha indicação é Varal.

Finalizo com minha décima indicação: Diário de Bitita da escritora Carolina Maria de Jesus. Acabo de notar que é a única falecida entre minhas indicações. Carolina, que viveu seus últimos dias em Parelheiros, onde tenho realizado a maior parte dos meus sonhos literários, era apresentada como a “catadora de papel” que escrevia, quando em verdade e em virtude de uma lógica desigual no acesso aos bens culturais, era uma escritora que catava papéis. Indiquei este livro por ser menos conhecido e por ser o meu preferido. O jeito com que Carolina traz as memórias da infância toca-nos profundamente. Acho que é importante vocês conhecerem este livro e apresentarem-no para aqueles/as que dizem que Carolina Maria de Jesus não é escritora literária porque só sabia escrever diários. Ajudemos a diminuir a ignorância seletiva. Aquela ignorância apenas sobre o que interessa. #ficaadica.

Vocês notarão que minhas indicações partiram de alguns critérios: metade mulheres, negros/as, com obras premiadas e 99% vivíssimos/as. Eu queria provocar boas lembranças e bons encontros entre vocês e as obras escolhidas, entre vocês e os/as autores/as. Indiquei livros considerados excelentes por júris selecionados, para que vocês pudessem fazer seus próprios julgamentos.

Quando fiz minha seleção, eu queria que vocês lessem textos inesquecíveis, que indicassem para seus colegas, para seus familiares e educadores/as. Eu queria muito, muito mesmo, ver vocês facilitando rodas de conversas com autores/as especiais, olhando em seus olhos e dizendo o quanto suas palavras os/as tocaram. Eu queria, com minhas indicações, que a literatura fosse um dos principais assuntos de seus dias. Eu queria que vocês chorassem, rissem, se irritassem, esperançassem com as palavras que escolhi. Eu vi tudo isso acontecer!

Gratidão infinita, meninos leitores, meninas leitoras!

Bel Santos Mayer

É educadora social, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e co-gestora da Rede LiteraSampa.

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