Entrei no salão acompanhado da minha solidão. Um casal jovem de comportamento regressivo e mãos unidas sobre a mesa, iluminado por uma vela, se admirava mutuamente numa pintura na parede ao fundo. Os demais, todos alhures, interagiam com seus indispensáveis devices.
Me sentei do lado esquerdo, M32, conforme instruções descritas na reserva que tinha em mãos. Um compartimento escamoteável projetou-se vagarosamente da mesa e revelou uma taça de vinho branco na temperatura correta. Algum tempo depois, já tendo provado dois tipos de antepastos que surgiram como se mágica fosse, uma sineta anunciou a chegada deslizante de uma máquina, vestida nos trajes de um fogão vintage dos anos 2030, que simulava fogo e fumaça enquanto a engenhoca a laser “imprimia” um caprichado espaguete à bolonhesa de trezentas e doze calorias — já contando o parmesão — que caiu proporcionalmente distribuído na circunferência exata do fundo do prato. Não dou a mínima para a quantidade de calorias da comida, mas, naquele contexto, o controle digital me pareceu útil. A sobremesa mereceria uma explicação ainda mais técnica, com o uso de termos que desconheço. Ainda assim, posso dizer que o arsenal de cânulas e serpentinas resfriadas produziu uma flor de perfeição e beleza extraordinárias, despertando com sua fragrância um desejo incontrolável de comê-la. Depois do café, com o decurso do jantar completo, vesti o capote e caminhei vagarosamente até o compartimento de repouso onde me acomodei e adormeci.
Acordei no exato momento em que caí no sono, tomei um café curto, apanhei os óculos e saí para o trabalho. Abri uma tela em branco, nomeei o arquivo, digitei data. Só faltava uma ideia para o texto, que surgiu em seguida:
Entrei no salão acompanhado da minha solidão. Um casal jovem de comportamento regressivo e mãos unidas sobre a mesa… A continuação a estimada leitora já conhece.
Viajar no tempo é possível?