Paranoide

Estranhas conversas sobre perseguição no caminho até a academia
Ilustração: Amanda Cestaro
04/07/2023

Faço ginástica às quintas. A turma é basicamente a mesma desde a primeira formação. Pessoas entram e saem a cada novo período, mas o grupo dos oito persiste envelhecendo junto. Um verdadeiro caso de amor coletivo.

Nina parava seu carro vermelho, dois toques curtos na buzina e seguíamos juntas. A primeira vez que Nina não apareceu, cheguei atrasada e perdi metade da atividade. Precisou levar a mãe ao hospital, foi o que disse. Na segunda vez, alegou uma “dor de cabeça dos diabos”, e eu comecei a perceber que as justificativas não se encaixavam com o antes e o depois.

— Quero te falar uma coisa, mas não posso contar aqui — disse no trajeto, praticamente sussurrando.

— Estamos sozinhas. Pode falar, Nina.

— Não, Júlia, depois a gente conversa.

— Certo, como quiser.

— Amiga — continuou quando já estávamos afastadas do carro vermelho —, é que o Fernando, meu marido, foi demitido das Casas Bahia!

— Sinto muito, Nina, mas o que isso tem de confidencial?

— Você não está entendendo, querida. Estamos sendo vigiados!

— Como assim!? Vigiados por quem?

— Pelo governo, Júlia!

— Que governo, Nina!?

— O governo dos Estados Unidos!

— Você acha mesmo que o governo dos Estados Unidos está preocupado com as Casas Bahia e a sua família?

— Amiga, você não sabe, já faz tempo que estou desconfiada!

— Desconfiada do quê?

— Que colocaram escuta no meu carro!

— Como assim, escuta para ouvir o quê?

— Você nunca ouviu falar no FBI?

— Nina, fica tranquila. Ninguém está interessado na sua, na minha ou na vida do seu marido. Relaxa!

Na semana seguinte, ao entrar no carro vermelho, me espantei com a falta do banco traseiro.

— O que aconteceu com o banco?

— Melhor a gente falar disso depois — sussurrou.

No intervalo da aula:

— É que mandei o carro no tapeceiro.

— Mas o banco estava praticamente novo, não?

— Sim, mas tenho que ter certeza de que não tem nenhuma escuta plantada nele, sabe?

— Ah, querida, de novo com essa desconfiança?

— Na forração do carro eles não encontraram nada. Preciso saber, Júlia!

Àquela altura, não tinha mais dúvidas de que a colega precisava de ajuda. Recomendei especialista, terapeuta e quase exigi que Nina marcasse consulta e fizesse o tratamento. O resultado compensou e manteve aquele assunto afastado das conversas das quintas por algum tempo.

Nina trocou de carro, o marido conseguiu um novo emprego, até que, numa quinta, meses depois, quando entrei no novo carro de Nina, não acreditei no que vi: o forro do teto havia sido retirado por completo.

Antonio Cestaro

É empresário do setor editorial e diretor do selo de literatura Tordesilhas. Estreou como escritor em 2012, com o livro de crônicas Uma porta para um quarto escuro. Em 2017, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura com o romance Arco de virar réu.

Rascunho