Ser escritora e outros arremessos

Na batalha com a ficção também é necessário educar as pessoas ao redor para as potências e concretudes da escrita
Ilustração: Bruno Schier
11/07/2023

Trabalho de porta aberta. Mudei a disposição dos móveis e dos cômodos várias vezes ao longo dos anos. Tentei dividir escritório com marido mais de uma vez e nunca deu certo. Barulho, porrada de piti no tampo da mesa, música alta, fone de ouvido no máximo, batuque no teclado, batuque geral, perguntação, interrupção de todo jeito, mostração de qualquer coisa… e meu trabalho sempre indo pro beleléu. Certa feita danei a chorar. Choro convulsivo, porque percebi que não conseguiria cumprir um prazo, e a culpa não era exatamente minha. Claro, não era só isso. Desse prazo decorria algum pagamento fundamental para a baixa dos boletos no início do mês seguinte, que vinha feito um diabo faminto. O que ocorre é que as companhias não ajudam nem a produzir, nem a pagar as faturas. O choro convulsivo era porque nada se ganha, tudo se adia, mesmo sem poder.

Mudei as mesas, depois adaptei um quarto como escritório, depois ficou insolúvel. Fico cá entre o quarto próprio woolfiano e a crítica a isso, a esse desejo burguês e legendário. Não tem quarto, minha filha. Escreva no meio da bagunça mesmo, aprenda a se blindar das interrupções, ou nunca escreverá nada. E daí ao ofício sobre o qual trata Natalia Ginzburg, este que entendemos ser algo que faremos por toda a vida, pelo qual eventualmente seremos remuneradas, que talvez seja levado a sério, mas que passa por intervalos de zero e um. Intermitências e impermanências. Natalia parou de escrever quando precisou criar filhos, mas sentiu pulsar o ofício ali por todo o tempo. Também chorou. E depois, quando deu, retornou ao tampo da mesa, e transformada. Conquistou até mesmo uns caraminguás, assim como Clarice, a nossa, e muitas outras. E, é claro: nem sempre se escreve com prazer ou o que se deseja.

De cá, pensando bem, resisti a parar de escrever muitas vezes. Por razões externas e internas. Quando meu filho nasceu, a despeito da divisão do tempo ainda mais complicada, a escrita era de fato uma solução. Tornou-se quase incompatível com a vida, mas era claramente uma produção que teria efeitos práticos. Lembro de me sentar à beira da cama, o que sempre faço quando preciso pensar e escutar o que vai dentro, para descobrir do que eu poderia me livrar mais autonomamente. A escrita de uma tese poderia trazer sofrimento, vez que concorria com tudo o mais, e a escrita exige tempo (é disso que se trata), mas a existência da tese finalizada desencadeava uma série de efeitos, entre os quais um efetivo aumento de remuneração, item absolutamente salvador de tudo o mais naquele momento da vida. E não apenas da minha, obviamente.

Conheço casos muito mais complicados do que o meu. Minha vida ainda se enredaria muito, depois da tese, com várias escolhas desafiadoras. Mas há quem sequer possa escolher. Vez ou outra, sou chamada a opinar sobre decisões de outras mulheres que estão entre escrever e dar de comer. Revisito meu passado e digo: não são excludentes, em especial se a escrita solucionar parte da alimentação. Entre professoras isso costuma ser possível. E aí, sim, uma rede de apoio, que geralmente desdenha a escrita, precisa entrar em campo para ajudar essa mulher a alcançar melhores condições. Termine, finalize, defenda, entregue, publique, seja lá o que for. Vários desses projetos são muito mais do que diversão ou hobby ou sonho. São concretos, são palpáveis, são parte da engrenagem cotidiana, aceleram ou destravam trajetórias, estão previstos em planos de carreira (quando os há), abrem caminhos. Então a escrita deixa de ser um luxo que paira entre as nuvens, razão de sucesso e fama, e passa a ser um dos itens a ticar no caderninho. E por que não?

Claro, entre escrever e escrever há muitas coisas e interrupções. Aulas disto e daquilo, do que gostamos e do que não; revisões de tudo quanto há; assessorias e mentorias do fim do mundo. E aí entramos numa relação em que a escrita precisa ser sustentada por algo mais. Desde que o mundo é mundo, não nos esqueçamos. Reiteremos também: as mulheres sempre sustentaram a escrita dos homens. A recíproca não costuma ser verdadeira. Qualquer professor que oriente teses consegue intuir a diferença. E a desigualdade flagrante, sob nossos narizes.

O que me faria parar? Desamor. Uma desilusão tão grande com a própria escrita, mas tal, que me fizesse murchar completamente e preferir outras coisas. Decepções com o tal do mercado editorial, o tal do metiê literário, com a falta de relatórios decentes de direito autoral, com o empurra-empurra cheio de empáfia e falsidade, com a ausência de livros nas vitrines mais descoladas, com a mudez absoluta nas colunas de imprensa também descoladas, e das coleguinhas, e dos coleguinhas, e de leitores jamais alcançados. Bem, quem nunca? Se fosse isso, já seria uma ex-escritora. Acho que, a esta altura, mais de um quarto de século depois dos primeiros impressos, já me sinto mais ginzburguiana. É meu ofício, e azar.

Trabalho de porta aberta, mas tem lá uma fita com uma plaquinha que diz “Favor não interromper”. Letras grandes, legíveis. E ainda sou educada, peço favor. Mas não é favor. Pode ser chamado também de respeito. O pessoal passa por baixo da plaquinha, imaginem! Passa. Rosno, faço cara de poucos amigos, respondo, mas com o teclado sempre à espera. Já deu para entender as intermitências, paciência. Mas também vamos educando as pessoas ao redor para as potências e concretudes da escrita.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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