Qualidade de vida e o meu carimbo novo

Carimbos imaginários e cabelos grisalhos desfilam em cena para mostrar que escrever também é prazer — e não apenas obrigação
Ilustração: Marcelo Frazão
07/10/2025

Vou andando pela calçada, sem grandes sustos, quando, de repente, uma mulher mais ou menos bem-vestida interrompe minhas passadas para me dizer o número de certa tinta de cabelo. Demoro uns segundos para entender o que é aquilo, de onde vem, o que significa. É que ela esteve, desde que me viu de longe, muito incomodada com meu cabelo grisalho. Nem me conhece. Decerto não concebe uma mulher adulta, mais perto da velhice do que da juventude, como alguém que simplesmente goste de ser o que é. O negócio dela é convencional, nada de surpreendente. Só quer dizer que a dona pretende se esconder atrás das tintas de qualidade razoável até sabe lá que idade, despreparada que está para o escoamento da vida que lhe acontece diariamente. O cabelo é apenas um detalhe, penso eu, mas ela discorda. O cabelo é uma espécie de denúncia. Pinte aí de louro acinzentado, menina, e esconda essa alegria prateada.

De outra feita, a questão era uma tal de “qualidade de vida”, noção tão elástica quanto minha gominha de cabelo ou meu jeans com stretch. Nem uma, nem duas vezes, gente meio desconhecida veio me dar lições de como proceder quanto à distribuição dos meus tempos de trabalho, diversão, prazer ou descanso. É mais ou menos assim que eles/elas dizem, do alto de suas extremas qualidades: “Você trabalha demais, menina. Vá se divertir”. Onde se lê “divertir”, leia-se sei lá o quê: alguma festa de família, churrasco dos cunhados, cinema (filme bom?), show, bar etc. Ocorre que meu interesse por bar ou por festas de família costuma ficar ali no abaixo de zero, caindo ainda mais na época do Natal.

Há outros sentidos para o “divertir”, eu sei, e eles podem me escapar. Já ouvi dicas de sono, alimentação, exercícios físicos e vida amorosa. Gente casada dando dicas de vida amorosa é de lascar. Mas eu sou simpática, aprendi com minha mãe, uma expert hard power em máscara social, como diz meu filho estudante de psicologia. Ela é uma lindeza de pessoa, conversada e vivaz, nas festas de todo tipo, mas chega em casa exaurida, de cenho franzido e voltando ao seu normal de ermitã convicta. Lá vou eu fazer festinhas, sorrir por horas, tirar proveito não sei ao certo de quê, apenas porque alguém disse que isso é “qualidade de vida”, embora meu coração esteja feliz no batuque solitário do meu teclado de computador. Gente que gosta de quietude e silêncio, cara, incomoda demais.

Olha, comprei recentemente um carimbo, desses automáticos, muito útil. Nele está escrito “foda-se”, que achei que pudesse ser uma espécie de frase-coringa. Não carimbo a torto e a direito, com medo de ser mal compreendida, mas ele sempre me vem à cabeça em episódios como esse do número da tinta ou aquele da lição sobre “qualidade de vida”. Não há um mês que se passe sem que alguém questione minha Coca Zero. A imagem do carimbo me vem nítida e voadora. Certo está o pessoal que toma álcool, não é mesmo? Também não se passa um mês sem que alguém me mande passear ou namorar, sem saber que faço isso amiúde, com gosto, só que discretamente. Dormir também, aliás, que não troco por nada (sorry, gente).

Mas entre as coisas curiosas está o lugar da escrita. Passo madrugadas e finais de semana, por várias horas, escrevendo no meu PC. Vira e mexe alguém sugere a troca por um cineminha de shopping, um bar com amigos/as ou um rolê qualquer. Definitivamente, a escrita não está no lugar do prazer. Parece inacreditável que alguém goze por escrever, que alguém deseje escrever, que alguém anseie escrever, numa noite, num sábado, num domingo, num feriado. É como se toda escrita fosse punição, dificuldade, trabalho árduo, obrigação ou esforço impingido. Parece pertinente a troca daquelas horas de teclado por outras na rua, no barulho, na interação, já que, se alguém escreve, está sempre trabalhando, no mau sentido. Lá vem meu carimbo voador. É bom que saibam, folks, que escrevendo também se goza, e que há quem prefira isso às demais opções mais inteligíveis. Toque seu piano, seu violão; dance sua salsa, seu forró; invista suas horas no boteco da esquina ou naquele metido a besta da zona sul; tenha prazer sexual, gastronômico ou outro, que é tudo de sua conta. Mas considere, my friend, que negócio bom é esse tal de escrever, ou de ler, e que há quem mereça essa qualidade na vida.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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