Porventura um não

A riqueza léxica em conversas cotidianas torna momentos da vida familiar mais lúdicos, divertidos e inesquecíveis
Ilustração: Bruno Schier
15/07/2025

Qual não foi o choque dela quando escutou o filho pequeno, um toco de gente, dizer que quase tivera “um colapso”. A Sandra não sabia se ria ou se chorava. Uma eventual preocupação com o colapso cedia lugar, intermitentemente, à diversão que era escutar aquilo da boca daquele menino pequetito e passar o dia (e o resto da vida) tentando imaginar onde ele teria aprendido a colapsar tão bonito assim. Essas crianças às vezes têm cada uma! E, diga-se, nem era bem um colapso mesmo.

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Por sua vez, meu filho, numa conversa de cozinha, também teve um ataque vocabular. Num dia de almoço apressado, enquanto nos despedíamos à beira da pia, de torneira aberta, ele disse, bem assim: “Mãe, preciso ir logo. Se alguém porventura ligar lá, eu preciso atender”.

Embora eu tivesse mantido a cara de paisagem que têm as mães em conversas em meio à lavação de louça, não pude deixar de reparar no vocabulário do rapaz. Não me contive: “Tá bem, vai com cuidado. E gostei do porventura”.

E ele se saiu com esta, melhor ainda, segundo seu senso: “É que você não viu o dia em que eu usei o a priori, mãe!”.

Que mãe linguista não acharia notáveis esses feitos! Num tempo de rasas e fragmentárias leituras, parece de se celebrar que um piazinho e um jovem adulto ainda possam ostentar colapsos e porventuras desse jeito. Valha-me o Aurélio!

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Bem, mas não me falta gente adulta para reparar nos lampejos do meu vocabulário quase vasto de leitora contumaz. Ou simplesmente de alguém que se interessa pelos assuntos masculinos. Não passou batido o momento exato em que eu elogiei o Paulo porque sua barba estava muito bem escanhoada. Ele, que é homem barbado há bastante tempo, estranhou o termo e perguntou do que se tratava. Bom, vai que é xingamento, embora não parecesse. Uma doença, talvez. Escanhoar não é exatamente uma palavra bonita, embora o resultado da ação possa ser. Nele, é, por exemplo.

Expliquei, sem muita cerimônia, do que se tratava, com direito a exemplo encenado. Barba que não arranha, ó, cortada rente. Quase me sai o famoso hit propagandístico “a primeira faz tcham, a segunda faz tchum, etc.”. E ele entendeu imediatamente, creio que para sempre. Só que não pôde deixar de observar, na gozação, claro: “Para namorar você a gente tem de andar com um dicionário”.

Não, não tem, Paulo. E continue tirando nota dez no barbeamento diário.

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Voltando ao meu rebento, que já foi criança um dia, eram sempre motivo de alegria as sacadas lexicais que ele dava, aliás, com certa frequência. Consta do livro de anotações de quando ele era bebê (aqueles álbuns de cores fofas que ganhamos para registrar as primeiras peripécias) que sua primeira palavra claramente pronunciada foi não. Já não me recordo de quão verdadeira é a anotação, mas é bem capaz que seja a mais límpida verdade. O cara continua um ótimo cuspidor de não, inclusive quando é indevido. Às vezes sinto até inveja dele. Com mais não distribuídos talvez minha agenda tivesse uma medida mais justa.

Não nada tem de difícil ou de infrequente. Não causa estranhamento na boca de quase ninguém. No entanto, como primeira palavra emitida por uma criancinha… É de se refletir. Ou não?

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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