Andei pensando na sucessão de quartos próprios que pude ter na vida, o que também me leva a rememorar a dificuldade de ter privacidade e tranquilidade em qualquer um deles. É claro que me refiro às tentativas persistentes de ser uma pessoa que escreve, e faço questão aqui de estender isso a todos e a todas os/as que produzem textos de maneira regular e sistemática, sejam eles dissertações de mestrado, poemas que um dia serão livro, crônicas ou romances. É justo para evitar que o nome escritora sirva para revestir somente a romancista bem-sucedida, e sabe lá o que é isso.
Quarto dividido
Comecei pelo quarto de dormir, dividido com a irmã, em uma casa ampla num bairro de classe média baixa na capital de Minas Gerais. Havia uma mesa para cada uma, presente da mãe que, com isso, buscava nos incentivar aos estudos. Ter um tampo, uma cadeira e um abajur faziam parte do melhor cenário possível para pessoas que precisariam ler, anotar, copiar, escrever e reescrever. De madeira maciça e mármore pesado, as mesas fazem parte do mobiliário da casa até hoje e têm o simpático nome de escrivaninha, objeto de luxo em muitos outros contextos. Assim é que, no quarto das meninas e no dos meninos, não tínhamos penteadeira ou toucador, mas, além das camas, um móvel que, se não convidava, ao menos permitia certo conforto para os estudos.
Posso dizer que aproveitei mais do que minha irmã as funções da escrivaninha. A despeito disso, nunca a quis tirar do conjunto da mobília da casa de meus pais. Está lá, sólida feito outros móveis que duram décadas. Não sei mais qual era a minha, pois eram cópias umas das outras, mas lembro muito bem da serventia que teve. O que fiz, muitas vezes, foi deslocá-la de seu lugar, em especial quando minha irmã e eu deixamos de dividir o quarto em decorrência de quizilas que aqui saltarei. Daí em diante, o quarto foi sendo colonizado pela função leitora: ganhou estantes, mais estantes, até que ficasse irrespirável.
Dependência de empregada
O segundo quarto próprio vem desde aí. Um dia, notando que o escritório nascia e o dormitório se desintegrava, tive de considerar a mudança para outro espaço. À época, o cômodo a que chamavam “dependência de empregada”, sem qualquer uso que o justificasse, saltou-me aos olhos como um grande desperdício, e resolvi tomar aquele lugar. Não me lembro como, fiz minha mudança pelas escadas, levando mesas, cadeiras, estantes e papelada, feliz da vida com a possibilidade de um recanto, meio esquecido, próximo da cozinha, onde eu poderia passar as noites lendo e escrevendo a máquina, sem incomodar tanto os parentes ao redor.
Esse quarto era um tanto menor do que o meu, mas infinitamente mais disponível. Sem irmã, sem som alto, sem conversa, sem cama, sem roupas, podia ser convertido em uma espécie de ilha deserta paradisíaca. Tinha porta, chave e entrada para um banheiro. Tasquei ali um adesivo que selava minha propriedade e me enfurnei por lá. Administrei, então, a reclamação da vizinha da casa ao lado, que não apenas ouvia minha bateção madrugada adentro, como também se ressentia da minha luz acesa que dava direto em seu quarto de dormir. A providência, tirada já do meu bolso, foi mandar pendurar umas persianas azul-escuro e evitar a máquina à noite, o que mais tarde foi muito suavizado e libertador pela chegada de um teclado de computador.
Os primeiros poemas, assim como os trabalhos de graduação e a dissertação de mestrado, foram escritos nesse cômodo, que tinha um pouco de cheiro de mofo. Nele eu tinha um número de telefone fixo só meu e podia escrever sem grandes perturbações, exceto, às vezes, por uma chamada para o café ou o lanche. Talvez tenha sido meu auge como dona de quarto próprio, mas disso eu só tomaria consciência muito depois.
Um corredor, embaixo da janela
Saí desse microparaíso para morar num apartamento minúsculo e populoso: eu, um homem adulto e um recém-nascido (e às vezes os sogros). Obviamente o espaço para a escritora minguou drasticamente. Meu escritório passou a ser então um corredor entre uma sala e dois quartos, embaixo de uma janela, de onde ao menos eu podia admirar a vista à noite, lá do oitavo andar, no alto do morro. Todos se esbarravam, todos se chamavam, o bebê chorava, eu empurrava o carrinho com os pés (aquela clássica cena), o homem demandava mais do que o pequeno. Foi assim que escrevi uma parte da minha tese, a mesma que depois me permitiu pagar inúmeros boletos.
Outro quarto dividido
Depois de alguns meses com a mesinha num corredor (uma outra mesa, mais ampla), me mudei para um apartamento escolhido a dedo justamente pela promessa de que um dos quartos pudesse ser um escritório. Novamente, populoso demais para o objetivo: num cômodo pequeno, duas mesas, várias estantes, um armário, duas cadeiras. Dividir escritório é a prova dos nove. Se é muito difícil compartilhar a mesma casa, imagine-se o escritório, para quem precisa de silêncio, concentração e dedicação. Obviamente, a situação não era fácil, mas foi devidamente contornada pela paciência e pelas esperanças tolas que uma mulher tem aos trinta anos. Hoje sabemos: a escritora poderia ter morrido ali.
Uma sala para dois
Na sequência, agora uma sala se tornou escritório de dois, com tudo o que isso pode representar quando as pessoas não se respeitam profundamente. Mudanças para lá e para cá, separações de mesas, um aqui e outro ali, os dois de novo, conforme a vida obrigava. Foi quando, depois de um divórcio e num segundo casamento, finalmente mandei construir um cômodo novo, o famoso puxadinho, bem colado à casa velha, onde achei que teria o sossego necessário à sobrevida não apenas da escritora, mas da professora, que é outra profissão que demanda muito entendimento de quem circula ao redor. Geralmente em vão.
Puxadinho
O quartinho novo ganhou estantes, recebeu uma velha mesa, uma poltrona de leitura, um tapetinho, centenas de livros e bibelôs. Porta com chave, todo um arsenal para intimidar a entrada dos distratores: placas de silêncio em mais de dez idiomas, placas de não entre, cones alaranjados, fitas zebradas. Com alguns anos de experiência, posso afirmar: nada funciona. Todos os motivos vêm dar à beira da ilha e a todos os pedidos tenho de atender. O quarto, finalmente, é próprio, mas não é todo meu. É aí que está o pulo do gato (sem rabo). Se tapamos um buraco, as coisas escapam e acontecem pelo outro. Trolls, gnomos, toda sorte de seres que insistem em aparecer, pular, brotar.
Agora uns ajustes à ideia original: além da boa grana para pagar boletos (parte geralmente menos lembrada do manifesto de Virginia), um quarto, todo seu, com uma espécie de campo magnético repelente, se possível. Ou a eterna zoeira da vida de uma mulher, quem sabe com fones de ouvido, quem sabe apenas cultivando uma angústia. Ou talvez desistindo mesmo e indo jogar a pelada da terça-feira com aquele time de ex-escritoras, agora que o futebol feminino tem até bom patrocínio.