Bateu uma melancolia. E ela era também recheada de afeto (eu pensei em escrever “prenhe”, mas desisti) e de uma espécie de pena. As palavras no diminutivo frequentam nossas vidas o tempo todo, mas às vezes elas ficam mais aparecidas, embora não percam o ar de inabituais. É como se, de repente, se iluminassem ou pudessem ser ouvidas na percepção mais evidente de seu exotismo ou deslocamento. E passamos a escutá-las amiúde, com uma frequência estranha e um pouco aterradora. Dá vontade de “corrigir” as pessoas: pode falar normal. Mas não fazemos isso porque o excesso de diminutivos também quer dizer cuidado e carinho, num momento em que isso não pode faltar, nem falhar, mesmo que venha de estranhos, e talvez principalmente porque vem de estranhos.
Minha família goza de saúde. Se há algo de que não posso me queixar é disso. A lista de dores da minha mãe somada aos remédios de pressão dos irmãos não chega a fazer nenhum estrago definitivo. Convivemos com isso, às vezes até de modo bem-humorado. E sempre comentamos sobre outros ramos da família quanto ao aleatório injusto da coisa. Os mais comportados sofrem mais e antes, até morrem; os mais transgressores e desobedientes… Esses parece que ganham também certas imunidades, quem sabe até mais vidas, feito os gatos ou os personagens de jogos. Bebeu, fumou, se arriscou e… Fez aniversário de oitenta, noventa anos. Como explicar essa longevidade aventureira? Meio contraintuitiva?
Meu pai, fumante inveterado e chegado numa cerveja, fez oitenta anos há um mês. Cheguei a escrever sobre isso em coluna recente. Ele e minha mãe são discretos, não gostariam de saber de tanta exposição. Mas para que serve uma filha escritora, afinal, se não para aumentar as coisas? Ou torná-las poéticas onde poderiam ser apenas insossas? Ou para simplesmente registrá-las quando poderiam sumir no nevoeiro esquecido dos dias?
O fato é que torcemos muito para que esse dia dos oitenta anos chegasse. Queríamos festa, música e bebida, mas deixamos para lá. Um laudo médico anterior à data festiva derrubou nossas intenções e encheu o olhar do meu pai, essa fortaleza, de uma preocupação grave. Eles são discretos… Não falam muito sobre o que sentem. Mas nossa indiscrição pode ser salvadora. Os filhos e as filhas precisam se envolver. O laudo provocou o cancelamento parcial dos festejos e ficamos à espera de uma solução. E ela veio na forma de stents: um objeto pequeno que se acomoda nos arredores do coração e o ajuda a funcionar. Coisa segura, simples e, na verdade, uma repetição de algo que já acontecera quase duas décadas atrás. Da outra vez foi pior.
Mesmo assim, com uma calma calculada, dia marcado, gente conhecida ao redor, é sempre ruim conviver em ambiente hospitalar. E foi o que fizemos, em escalas e rodízios entre irmãos, a fim de acompanhar o pai, acolher a mãe e aliviar a tensão que sentíamos todos. A morte é um dia que a gente conhece, espera a vida toda, mas não quer ver chegar.
Mas esta crônica não pretende relatar uma internação do nosso pai. Na verdade, ela quer registrar que todas as enfermeiras envolvidas nessa trama só falavam com ele no diminutivo. Para nós, isso causava uma estranheza completa porque ele está longe de ser uma figura frágil, franzina ou vulnerável. Nem sequer quando parecia um pouco abatido chegava a ser digno de um “vou te trazer uma aguinha” ou “põe a mãozinha aqui na cadeira”. Nosso pai não tem mãozinha, pezinho ou orelhinha. E as palavras no diminutivo nos lançavam num ambiente de dúvida e de incômodo. O que ele mesmo estaria achando isso? Talvez não fosse o momento de se preocupar. Provavelmente ria por dentro, achava graça. Minha irmã, observadora e eloquente, fez logo um comentário sobre os diminutivos que não ornavam. Nosso pai, de fato, riu. E começamos nós mesmos a falar palavrinhas, todinhas no diminutivinho, tratando-o como um doentinho que precisava de cuidadinho, tornando tudo um episódio passageiro desobrigado, por alguns instantes, da tensão que sentíamos quando o medo da perda rondava aquele box de UTI.
Os diminutivos de hospital viraram uma espécie de piada interna. Enquanto nosso pai se recuperava, já ansioso pelos jogos de futebol da rodada, nós lembrávamos de palavras formadas para que o mundo parecesse menos ameaçador, a doença, a cura, a ausência do dono da casa, a sacola com uma muda de roupa, os bipes incessantes dos equipamentos médicos, tudo tão sufocante que, de repente, uma palavrinha ajuda a aliviar tudinho. Todos loucos para ouvir: Prontinho, o senhor vai ter alta, olha que gracinha.