Inventário da adolescência remota

Da tristeza de um Bamba mequetrefe na adolescência à grande vingança com uma coleção reluzente de All Star
Ilustração: Thiago Lucas
10/09/2024

De vez em quando, algo me faz lembrar a adolescente que fui. As memórias são vagas, difusas, embaçadas, e o sentimento não é agradável, mas não escapo dos lampejos de sensações, imagens e nomes passados e moídos com suor e lágrimas. Adoro ver os adolescentes de hoje, mas eu mesma queria muito que a minha fase passasse logo. Ô momento chato, meu Deus.

Aplicando uma prova numa sala de aula em 2024, sem muito o que fazer, já que a moçada não oferecia qualquer resistência, resolvi reparar neles e nelas. Notei então que parte considerável dessa juventude confinada sob meu teste usava tênis. Claro, calças jeans esburacadas de guerra, moletons, a camiseta do “terceirão”, brincos, meias coloridas e, meu alvo, tênis, geralmente surrados e encardidos. Assim ficam melhores. E, na minha estatística básica, notei que metade desses tênis era All Star. Foi aí que minha adolescência se abateu sobre mim com tudo.

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Um dos meus poucos sonhos de consumo na adolescência foi um All Star. Meus pais nunca me deram um. Eram caros para os padrões da família. Além disso, éramos quatro filhos e tudo passava por uma divisão rigorosamente equânime. Se um ganha, todos ganham; se só um quer (ou precisa), ninguém ganha. Então, como nossas necessidades e desejos eram sempre muito diversos, quase sempre ninguém ganhava nada, exceto nos aniversários, quando a regra se flexibilizava um pouco. Talvez muita gente da minha geração e classe social se identifique comigo nesse quesito irmãos & presentes.

O All Star nunca veio. O clássico, aquele preto de sola branca, listrinhas vermelhas no arrodeio, era uma miragem ao longe. Nas vitrines do Centro da cidade, os Converse pareciam me chamar. Caía uma lágrima, um arrepio me tomava, mas nunca tive um. Lá pelas tantas, depois de muito desejar o tênis, minha mãe, num arroubo de culpa, e não me lembro em que ocasião (certamente houve uma), resolveu me atender: chegou em casa com uma caixa embrulhada. Mas… Era um Bamba.

Alguém aí teve Bamba? Era como ter… O plano B ou C. Era como chegar em segundo ou terceiro lugar. Era como ganhar o prêmio de consolação. Mas não me consolava. Entendi a intenção carinhosa de minha mãe, mas a decepção foi maior. Senti até certa vergonha, porque usar a imitação nunca me pareceu razoável. Não era como a Conga. A Conguinha dos tempos de escola infantil tinha seu charme. Mas o Bamba… Não colava. Até hoje não sei se minha mãe me deu um golpe ou se nem sequer sabia a diferença entre os dois modelos. Provavelmente foi pelo preço e pensou: essas feiuras são parecidas, levo a mais barata.

Não sei se usei o Bamba. Não tenho nem lembrança disso. Nem sequer sua cor me vem à memória. Já o oco que me causava o All Star, sim, esse sempre esteve presente. Mesmo sendo aquele tênis baixo, duro, bicudo, estranho… Era ele que eu queria. E fiquei no querer até a idade adulta, quando finalmente consegui me vingar. Preparem-se.

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A turma fazia a prova e cruzava os pés embaixo da mesa ou da cadeira. Sujava um pé do tênis com a sola do outro. Havia até quem pisasse na lateral de um pé com a sola do outro pé, sem o menor pudor de manchar a alvura do All Star. Eu ali, naquela gastura, pensando como é que pode? Que falta de cuidado. Aqueles tênis esfolados, bico branco amarelado, borrados, felizes feito crianças na piscina. Reparei nisso uma manhã inteira e olhei, feliz, para meus próprios pés: cá estou eu com um dos meus muitos All Star. No dia, um roxo mescla bem estiloso que nem me lembro mais onde comprei.

O fato é que, já adulta e assalariada, tive meios de me presentear por uma adolescência inteira. Nem sei qual foi o primeiro modelo. Preto clássico? Oncinha? Couro? E aquele passeio mágico pela Galeria do Rock, em São Paulo? Je-sus! Estudei sobre a fábrica (só uma autorizada no Brasil, no Sul), depois a compra pela Nike, a mudança recente de tecnologia e de preço… Mas continuo fã, de olho nos modelos Chuck Taylor, plataforma, sola alta, leves e almofadados, “gourmezices” que uma adulta traumatizada até dispensa. All Star raiz, diz meu coração. Cano baixo, por favor. Sorry, Bamba; valeu, mãe. All Star, a escritora está às ordens para patrocínios.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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