Exímio datilógrafo

Os encantos da “anacrônica” datilografia como uma afetiva ponte entre gerações de uma mesma família
Ilustração: Carol Merlo
20/12/2023

Meu avô foi jovem, minha avó também, mas não os conheci assim. Só me lembro deles de cabelo branco ou daquele clássico pintado de uma cor inverossímil das mulheres da geração dela. Meus pais também foram jovens, e ainda eram quando eu nasci, mas não me lembro de considerá-los jovens em algum momento. Eram pai e mãe, trabalhavam fora quase o dia todo, me pareciam grandes e ameaçadores, em especial ele. Sempre foram muito maiores do que eu, que me media, às vezes, em relação ao tamanho da geladeira na cozinha, um refrigerador azul, cor de eletrodomésticos nos anos 1970. Um dia ultrapassei a geladeira e passei a achar que talvez também alcançasse minha mãe, na altura. Meu pai, não. E não deu mesmo. Com o tempo, no entanto, eles foram ficando mais velhos e menos ameaçadores, em especial ela. Aos quase 80, talvez se possa dizer que vão ficando frágeis, coisa com a qual não sei lidar e que é ainda difícil de imaginar.

Há muitas coisas que nossos pais foram e que não conseguimos entender. São ininteligíveis. Como são meio indecifráveis os idosos que eles se tornam e com que também não sabemos lidar. Dizem que meu pai foi um jovem boêmio, e isso ele jamais deixou de ser. Que era bom nos estudos, que trabalhou desde muito novo, que construiu ele mesmo sua primeira caixa de engraxate e que sempre gostou de dirigir. Nisso tudo, a caixa de engraxate me soa como uma relíquia. Dizem que minha mãe tomava conta de todos os irmãos mais jovens, que trabalhou para pagar os estudos de graduação e que foi, um dia, professora. É inimaginável, para mim, que ela fosse professora, como eu me tornei. Mas, pensando bem, ela teria sido uma baita docente, talvez um pouco rígida demais, mas certamente elegante e eloquente. Ele, de engraxate passou a várias coisas, até que resolveu, contra tudo, fazer medicina. E conseguiu, porque quando a inteligência se junta às políticas públicas costuma funcionar. Pode ser que dê. E deu. E minha avó, mesmo quase não tendo estudos, tinha certeza de que a mudança era por aí. Como ela sabia? Não sei. Mas foi o que ela conseguiu para todos os filhos e filhas. No entanto, é bom que se diga: sem as tais políticas a inteligência pode naufragar.

De todas as coisas que ouço dizer que meus pais foram, e que os fazem parecer outras pessoas, algumas são mesmo insondáveis. Uma delas me encanta, e essa eu vi acontecer: meu pai foi exímio datilógrafo. Em uma época em que fazer um curso de datilografia era uma promessa de futuros possíveis e melhores, o jovem que não conheci se dedicou a aprender o tal asdfg, não sei em que máquina, e de fato precisou disso por muito tempo, em especial enquanto trabalhava no Banco da Lavoura, já extinto faz tempo. Andar com ele pelo centro da cidade é sempre um tour que não experimenta apenas o espaço, mas também o tempo: aqui era o Banco da Lavoura, ali era a Sears, ali mais embaixo tinha uma leiteria… Uma cidade quase completamente desconhecida para mim, um traçado igual, mas uma ocupação que ele parece enxergar por baixo das fachadas atuais, como uma espécie de palimpsesto urbano fora do meu alcance. Quando eu cheguei e tomei posse das ruas, já eram a Mesbla, o Banco Real e muitas outras placas que também já se foram e que meu filho provavelmente não pode ver.

O datilógrafo ágil e perfeccionista que meu pai foi manteve um discurso de que era imprescindível na vida fazer um curso de datilografia. Ouvi isso ao longo de parte da minha juventude, mas não obedeci completamente. Ainda era o tempo das máquinas de escrever, e ele percebeu logo que eu me interessava por elas. No entanto, quando ele me deu o primeiro curso na forma de uma pequena apostila, eu já estava viciada demais nas teclas erradas e tive dificuldade de perder os condicionamentos truncados. Tentei, comecei, mas não rolou. E aí vieram os computadores, os teclados silenciosos, deixei de fazer barulho nas madrugadas, dei conta completamente da vida estudantil e me tornei escritora sem as habilidades datilográficas que ele me sugeriu. Passou. Mas ainda hoje fico encantada ao vê-lo digitar com precisão, sem olhar o teclado sequer por um momento, exímio que ainda é em muitas coisas que ele recolheu na juventude e nunca mais esqueceu. De cá, vendo-o digitar para enviar e-mails e outras coisas que aprendeu na travessia do tempo, penso que ser datilógrafo é como esticar até aqui uma época que só existe porque meu pai está vivo. Com ele, a datilografia continua uma arte do movimento e da precisão. Um pouco invejosa, assisto a isso pensando que o tempo não se escreve mesmo apenas para a frente. É só olhar para nós quando estamos todos na mesma sala: ele, eu e meu menino; entre nós, um exímio datilógrafo que escreve também nas telas, uma catilógrafa de computador e um rapazote que se aliena no touchscreen.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

Rascunho