Dez a mais

Aos 50 anos, a cronista reflete sobre o tempo em fatias de décadas, entre mudanças, moradas, maternidade e os desejos para os próximos anos
Ilustração: Eduardo Mussi
02/09/2025

Tem fase da vida que parece que durou um século; outras fases parecem durar nada. Há épocas em que dez anos fazem pouca diferença; depois, passam a fazer demais. Nas pontas, a coisa soa mais acelerada: o começo e o fim. Ou será correta a impressão que temos quando vemos certos velhos, os muito velhos, com jeito de quem apenas espera? Uma avó ativa, “cheia de vida” (como costumamos dizer), avessa ao crochê, quase atleta, repleta de planos, é a antípoda da vovozinha sentada no sofá, com dificuldade para ir ao banheiro e para mandar mensagens de WhatsApp. Tem de tudo neste mundo, tem assim e assado, adormecido e assanhado, podemos dizer, claro, escorregando para o estereótipo, em todos os casos. Fico pensando que a gente devia envelhecer como quer.

Fazer cinquenta anos é curioso. Poderia ser a metade de uma vida. Há qualquer coisa que nos faz pensar que viveremos cem anos, mas a maioria não chega lá. Então, fazer cinquenta anos, amigos e amigas, é mais da metade, muito provavelmente. Ter mais para trás do que para a frente, como dizem pessoas queridas que já estão mais adiante. Saúde plena, isso, gozo de saúde plena. É o que penso, por enquanto. Pode ser que chegue aos noventa, com sorte, mas pode ser que de um jeito indesejado e desajeitado. Não é bom pensar. Ou é? De acordo com o que se pensa e se projeta, talvez atitudes preventivas ocupem mais espaços e tempos na vida agora. Adiantarão?

Fatiemos de dez em dez. Parece pouco, são só cinco fatias. A primeira, de enorme desenvolvimento cognitivo e emocional; a segunda, de grandes crises, dúvidas e algum desenvolvimento social; a terceira foi a fatia das grandes mudanças, com a chegada de um filho, inclusive. Na quarta fatia, o trabalho ocupou quase tudo, até porque os boletos ocuparam mais. A fatia final (até aqui), a que me traz aos cinquenta, foi de refazer, redescobrir, redistribuir, viver plenitudes com mais arrojo e mais inteligência, semear menos e colher mais, ver filho crescer, apoiar os mais velhos e os mais novos, dirigir, coordenar, administrar. E agora? Fatiando adiante, mais uma década será de quê?

Outro dia, numa conversa telefônica, de súbito a ideia dos próximos dez anos apareceu. Falávamos sobre morar, habitar uma casa, um apartamento. Novas fases, mudanças importantes, mais para uma pessoa do que para a outra. Meu interlocutor, muito aliviado do momento que vive atualmente, afirmou: “Agora vou viver nesta nova casa pelos próximos trinta anos!”. Só me ocorreu que: “Talvez”. Quem é que sabe o que a vida exigirá?

Nos últimos trinta anos, os ciclos começados e encerrados foram muitos. Morei em cinco casas diferentes, incluindo a dos meus pais. Vivi também as crises das separações, que mexem nas formas de habitar e nas esperanças sobre o que virá. A fatia dos dez últimos anos foi relativamente estável. Pareceu-me, às vezes, que eu talvez pudesse morrer no mesmo lugar para o qual me mudara dezessete anos atrás. Embora eu ainda possa sentir, se fechar os olhos, o cheiro da primeira tinta das paredes, a casa já me serve há dezessete anos, com algumas reformas e a poeira do tempo passado. Há sujeira impregnada, fechaduras frouxas, telhado escurecido, manchas nas paredes. Uma, duas demãos de tinta apenas escondem certas coisas vividas. São quase duas fatias morando no mesmo endereço, embora agora menos certa do definitivo. Tanta coisa já pareceu firme. E nem era.

Quando meu interlocutor falou em trinta anos adiante, pensei que lá terei oitenta. Os meus próximos trinta serão, certamente, bem diferentes dos do meu filho, que mal passou da sua segunda fatia: formação por terminar, profissão por começar, vida amorosa instável. Os próximos dez anos que provavelmente viveremos juntos (tomara!) – meu rebento e eu – serão definidores. Mais para ele do que para mim, possivelmente. E nisso cabe minha decisão sobre onde ficar, onde morar, o que fazer.

Em 2024, decidi não investir num futuro cravejado de solidões. Terá adiantado alguma coisa? Nunca sei o que é que estou fazendo; e já sei que só saberei depois. Na próxima fatia de dez anos, meu filho se formará na faculdade. Espero que tenha condições de voar com certa segurança, mesmo este país sendo o que é. De cá, se não me atrapalharem mais, chegarei à minha aposentadoria. Ou esse é um dos meus desejos mais intensos, já há alguns anos. Não que eu pense em parar de trabalhar, não exatamente isso, mas que eu cultive o desejo de encerrar certas chateações e certos contatos que não me trazem qualquer benefício. Para chegar lá, ando racionando energia há uns cinco anos porque, na última fatia vivida, tive a impressão de que não aguentaria chegar longe, naquele ritmo. Desacelerei, mas ainda falta muito.

Comparar minhas fatias de vida às do meu filho me dá uma noção interessante de ascensão e descensão. O mais importante de tudo é que estejamos ambos bem nessas caminhadas. Meu interlocutor, ao telefone, talvez more por trinta anos no mesmo endereço. De cá, passaram-se dezessete na mesma casa e hoje penso que talvez ela não me sirva mais daqui a uns cinco ou dez anos. Talvez ela fique grande, precise de mais uma reforma, fique menos segura para uma mulher sozinha. Ela é funcional para uma idosa: quase não tem degraus. É suficientemente gradeada e quente. Mas as pessoas que hoje a habitam, como estarão? Fiz, um dia, o plano de habitá-la sozinha? Talvez não tenha pensado nisso, embora eu tenha sido uma jovem que sonhou morar só. Jovem e só. Não imaginei me tornar uma velha. Que jovem imagina? Velha e só.

Vão dizer agora que uma velha sozinha pode ficar bem. Também conheço algumas. E ainda não alcanço o que sente minha projeção de mim quanto a isso. Não sou essa velha e me sinto segura onde estou. Mas não estou só. Na próxima fatia de vida, talvez eu possa ter melhor noção das novas necessidades e dos desejos que me porão em marcha. De todo modo, há pelo menos dez anos não tenho lidado bem com a descoberta desses desejos. Talvez eu não possa ser honesta comigo ainda. Talvez eu chegue aos pés do grande objetivo de morar só, aquele que projetei um dia e me foi sequestrado, e sinta falta de algo com que não soube (con)viver. Se viver mais dez anos, preciso pensar amanhã na manutenção desta casa, neste pacato endereço, num bairro que se transforma lentamente (e lá vem ali mais um predinho de seis andares…). Se tiver de pensar nos próximos trinta anos, talvez me engane algumas vezes sobre a vida e a coabitação. Talvez conclua que a jovem que desejou morar só estava certa. Ou, ao contrário, estava errada e não aprendeu grande coisa até hoje.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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