Decisões um pouco acertadas

A felicidade das pequenas coisas durante o almoço com o filho se torna num inventário de saudades acumuladas
Ilustração: Ana Elisa Ribeiro
10/10/2023

Uma vez escrevi sobre um almoço comum, num dia ordinário, provavelmente um meio de semana, na casa dos meus pais, quando eu ainda morava lá. Os barulhos eram rotineiros, a mãe enfurnada na cozinha de azulejos datados, o ambicionado fogão de seis bocas, que atendia melhor uma família grande, os cachorros preguiçosos no quintal cimentado, o cheiro de comida do dia a dia. Talvez um som compassado de panela de pressão, a cozinhar feijão preto, do que não gosto até hoje. Desci o lance de escadas que dá na copa. Uma casa espaçosa, com copa. De onde eu vinha, do piso de cima, era possível ver, por um rasgo da porta, apenas a cadeira da cabeceira da longa mesa de madeira pesada. Nessa cabeceira ficava meu pai, que lia o jornal impresso diariamente, àquele horário, depois de certa idade e de ter se livrado dos compromissos de trabalho mais regulares. O almoço com ele sempre produzia certa tensão, mas o que importava ali era a imagem: a de um homem robusto sentado à cabeceira lendo o jornal de folhas grandes e bem abertas. Minha crônica não era bem sobre nada disso, mas a atmosfera, como sabemos, importa. O que eu vi, desde o alto da escada, foi meu pai sentado, de lado em relação a mim, lendo seu jornal. Ele não me notara ainda. E por alguns segundos pude sentir uma terrível saudade daquele momento, daquela imagem, tão cotidiana, mas que certamente um dia não existiria mais. Uma saudade do que ainda estava ali, diante dos meus olhos. Saudade, aliás, que não senti verdadeiramente até hoje, porque tanto meu pai quanto o jornal impresso continuam lá. E provavelmente essa cena diária ainda acontece, na mesma casa, com a mesa na mesmíssima posição, mas sem nenhum filho morador para observá-la todos os dias.

Saudade para amanhã
Escrevi sobre essa cena e, principalmente, sobre as saudades lancinantes que podemos sentir dos que amamos e de seus gestos e dos dias comuns que passamos ao lado dessas pessoas. Saudades que podem ser uma espécie de antídoto: quem sabe aproveitemos melhor essas e outras experiências? Nem sempre resulta bem. No entanto, registre-se o momento em que o mundo parou para que pudéssemos identificar um sentimento, e talvez uma lágrima preventiva, precoce, escorresse. E a enxugássemos envergonhadamente e nem pudéssemos explicar direito de onde ela veio. Pronto: os pratos, o feijão, o arroz, os irmãos, cada um sentado num lugar demarcado. A mãe ao lado do pai, meio deslocada. Uma conversa aleatória, troca de informações razoáveis, os planos imediatos de cada um, uma bronca qualquer, uma reclamação, precisa comprar isto e aquilo, o problema da vizinha, a morte ou o nascimento de alguém. O jornal assim de lado, cadernos emprestados a todos, cada qual com seus interesses. Barulhos de boca, de dentes, de saliva, de talheres. Podem retirar. Todos saem e vão para suas vidas.

Novas saudades
Voltei a sentir uma saudade dessas outro dia, neste tempo de calor intenso. Agora, no entanto, o sentimento pontiagudo foi com meu filho, que chega todos os dias às 13h10, abre o portão, que range, depois a porta, diz um oi e segue para o quarto ou vai guardar mochila, tirar sapato, lavar as mãos. Não ponho óleo nas dobradiças das portas. Elas precisam mesmo ranger. São sinais, são comunicação, ainda mais em uma casa de tão poucos habitantes. Meu filho chega, o almoço está quase posto. Tudo depende de sua chegada. O ranger do portão me dá o sinal para temperar a salada que adoramos, finalizar a carne e terminar de esquentar alguns itens. Comida comum, feijão roxo, carros passam na rua ao lado. A mesa deve ter a metade das dimensões do que é a dos meus pais. Os espaços são todos menores, mas confortáveis. Borbulhas de refrigerante, as cachorras latem animadas, excitadas com nossa movimentação, talvez com o cheiro de comida de gente. Uma dança coordenada entre mim e meu filho na cozinha: pegar pratos (lascados), talheres, copos, abrir geladeira, fechar freezer, gelo, duas pedras para ele, uma para mim. Todo dia fazemos tudo igual. E amamos fazer assim, mesmo quando parece que nem sabemos que amamos. Depois nos sentamos, vamos comer. Ele à cabeceira, com o pé na cadeira, minha bronca diária; eu na lateral, de costas para a janela, perto da cozinha, tiro os óculos, começo pelo pior (arroz e feijão) e deixo o melhor para o final (a salada). Meu filho faz exatamente o contrário, num prato muito mais cheio do que o meu. Puxamos assunto, falamos de nossos planos, nossas tarefas, afazeres, uma bronca, uma reclamação, uma novidade, duas, três, uma opinião. Algumas decisões me parecem acertadas nesta vida: almoçar juntos e não ler nada nesse momento. Não compramos jornais impressos e o celular é proibido à mesa das refeições desde que o cara era criança. Não fosse isso e nem sei, talvez nem conversássemos mais e eu o conhecesse ainda menos, à medida que cresce e se transforma.

Conversamos bastante. Ele precisa falar, narrar, opinar, mais do que eu, que ouço, espero, analiso. Às vezes, opino, comento, reprovo, aprovo, sugiro, bronqueio, conto algo, desabafo. Quero saber nomes, lugares, projetos. Ele encantado com algumas novidades, deixando a comida esfriar. Queremos comer, mas queremos falar, mas não se pode comer comida fria, mas ele não se importa, eu sim. Bebemos refris, não estamos nem aí. Abro meu chocolate, ele nunca. Preciso de algo doce, ele não. Meu sinal de que vou me retirar é silencioso: recoloco os óculos. Não precisamos dizer nada. Meu filho já sabe: então ela vai se levantar, vai trabalhar. Ele vai ficar por muitos minutos ainda, come lentamente desde criança. Ainda pode, tem tempo. Eu preciso retomar minhas atividades, às vezes preciso me trocar para sair, enfrentar o trânsito ruim de uma cidade um tanto hostil, atuar em uma profissão mais hostil do que a cidade. Ele vai ficar, talvez durma, talvez estude, talvez me espere.

Como há alguns anos, senti uma saudade terrível dessa cena, dessa atmosfera, quando me dei conta de que ela também me faltará. E não deve demorar. Assim que meu filho começar um estágio, mudar o horário das disciplinas da faculdade ou tiver uma agenda mais adulta, provavelmente o portão não rangerá às 13h10, a porta não se abrirá, não terminarei de temperar a salada colaborativamente e nem levaremos juntos nossos copos de refri para a mesa (duas pedras de gelo para ele, uma para mim). Provavelmente, vou pôr meus óculos em cima do tampo e estarei só. E nem fome me dá mais quando penso nisso, nesse dia, nessa espécie de nova era.

Mas ainda não é isso. Ainda estamos aí, por ora com nossas chaves que abrem as mesmas fechaduras, horários que coincidem ou que fazemos que coincidam. Porque uma parte dos nossos encontros depende disto, sabemos: fazer que coincidam. Mas há um momento em que o mundo nos draga, e aí não somos mais nossos, perdemos uma das melhores partes da vida besta. Passamos a almoçar em lugares impessoais, cheios de gente desconhecida ou com colegas que apenas suportamos, saboreando apressadamente um tempero que sequer sabemos de quem é, se houver sabor e tempero. Acabou-se. Mudou. E esperaremos, talvez, pelos sábados.

Decisões para lembrar do passado com saudade no futuro
Algumas poucas decisões me parecem acertadas quando sinto esse tipo de saudade precoce e preventiva (que dura, na verdade, segundos, mas que é uma espécie de flash de consciência): almoçar com quem amamos (fazer que coincida é uma arte, uma luta), conversar, bronquear, rir, comer a sobremesa, temperar a salada, depois ir cada um para o seu canto. Proibir o celular à mesa e também não o levar para o quarto na hora de dormir e descansar. O resto das decisões a gente não tem bem como medir.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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