Cuidadoso

Entre memórias e objetos, um elogio à delicadeza de quem conserva o que o tempo e o mundo insistem em descartar
Ilustração: Italo Amatti
11/11/2025

Para mim, ser cuidadoso sempre foi qualidade de homem. Quero dizer, também de homem. Cuidar, manter e conservar objetos, dos pequenos aos grandes, sempre foi algo que um homem sabia e podia fazer. Isso porque, por exemplo, a calculadora Dismac do meu pai é mais velha do que eu e está, mesmo depois de cinquentenária, em perfeito estado. Aliás, mais conservada do que eu. E ela não apenas funciona e faz as contas básicas que foi projetada para fazer, mas também está limpa e até lustrosa.

É claro que isso não é apenas questão de cuidado. Há um outro elemento na equação que não tem a ver só com as mãos leves do meu pai. Tem a ver com o que alguns chamam de “obsolescência programada”. Os equipamentos que compramos, de toda natureza, há tempos não são mais produzidos para durar. Quem é que não sabe disso? Uma geladeira não dura mais 50 anos, um fogão também não; menos ainda um celular ou um notebook. Tudo nasce com data de validade bem estreitinha. Os materiais são mais frágeis e, se o equipamento depender de um software… aí é que não dura mesmo. Logo, logo aparecerão mensagens falsamente amigáveis alertando sobre uma desatualização fatal que impedirá o funcionamento. Pronto: decidiram por mim que é hora de comprar outro item — mais caro e pouco durável também.

Juntando meu pai e seu cuidado à qualidade dos objetos que ele, a muito esforço, adquiria décadas atrás, eis que o resultado, nos dias de hoje, são relíquias bonitas, funcionais, mas fora de linha. Raridades impressionantes, equipamentos curiosos, tudo com jeito de museu, mas brilhantes como se fossem novos. Teclas que não agarram, metais lustrosos, visores nítidos, mecanismos sem travamentos. É claro que isso confunde a gente.

Quando eu era pequena, achava que todo mundo sabia conservar e consertar de tudo. Doeu descobrir, adulta, quando me casei, que não era bem assim. Meu pai era a exceção. E a desculpa não tem a ver com calos nem com o tamanho da mão. É mesmo uma habilidade, um negócio que a pessoa tem que deixa tudo tinindo. Cuidado com calculadoras, carros, máquinas de escrever, instrumentos musicais, teclados de todo tipo e muito mais. Aliás, comprar carro usado do meu pai é o melhor negócio que existe! Tudo em perfeito estado, limpinho e lubrificado. Uma bênção.

Muito diferente do que encontrei vida afora… É só fazer um comparativo: você compra um item no mesmo dia que alguém (marido, filho, primo, vizinho). Cinco anos depois, você reencontra a pessoa com o item e compara. Deus do céu, quanta destruição. O exemplo do meu filho é clássico: meu celular e o dele geralmente são comprados na mesma semana. O dele falece uns anos antes do meu, além de chegar ao fim da vida completamente desfigurado. Já o meu… parece a calculadora do meu pai. Só não consigo mais usá-lo porque o fabricante tira onda com a obsolescência programada e não me deixa mais resistir. Vamos nós comprar outros aparelhos, que logo morrerão de novo, a despeito de alguém que cuide e conserve.

Mas a questão não passa só por celulares e itens sensíveis do tipo. As maçanetas das portas da minha casa foram todas instaladas no mesmo dia, pelo mesmo marceneiro. Os quartos ficam um de frente para o outro. Nem preciso dizer como anda a maçaneta do quarto do meu filho, catorze anos passados… e como está a minha: lustrosa e em perfeito funcionamento. E o que mais? A tampa do vaso sanitário? As gavetas da escrivaninha? As bermudas e seus furos inexplicáveis? O pente? E segue a lista.

Aqui em casa, costumamos chamar isso de “ogrice”, certa tendência que muita gente tem para ser ogra, bruta, mão pesada. Dá prejuízo, claro. E meu pai, nos seus mais de 80 anos, é, para mim, aquele espécime raro de gente que cuida e conserva, seja lá o que for. Aliás, no meu aniversário de 50 anos, vejam só o que ele me aprontou: consertou um teclado (órgão a ar) que me deu 49 anos atrás. Sim! O objeto estava guardado na casa dele, em bom estado, mas já sem tocar (mecanismo, teclas etc.). Ele passou uns meses estudando o teclado, abriu, limpou, trocou peças, pôs um feltro por cima e me (re)presenteou, 49 anos depois, junto com a partitura de Parabéns para você. Se isso tudo não for cuidado, eu não sei o que é! Vida longa a quem cuida, de tudo e de todos.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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