Crônica em estado avançado de putrefação

O espanto e a indignação diante da notícia da suposta morte da crônica, recebida por mensagem de celular
Ilustração: FP Rodrigues
12/09/2023

Já adianto que estou me sentindo uma espécie de Brás Cubas: fazendo coisas depois de morta. No caso, mortas as coisas, (ainda) não eu. Mas vá lá: saber que o que você faz já morreu tem o impacto de um assassinato precoce. Alguém se solidariza?

É que outro dia fiquei sabendo que a crônica morreu. E que ninguém gritou. Que foi assim, meio discretamente, que um dos gêneros mais simpáticos da literatura mundial teve seu fim, sem ninguém estrebuchando, sem sequer uma palavra de reivindicação. Fiquei pasma. Enviaram por zap a tal notícia, curiosamente também na forma de uma suposta crônica, e nem pensaram no choque que eu poderia ter ao me sentir tão viúva quanto otária na jogada toda. Só pude soltar um “afff”, nossa interjeição preferida.

Mas é isso. Há as pessoas de primeiro escalão que decidem e desdecidem o que acontece com as coisas; e há nós, que ficamos ali feito bobos, lendo e produzindo post mortem coisas demodê ou na periferia do “mercado”. Andei macambúzia, em círculos, por uns minutos, e aí decidi usar esta coluna de crônicas em estado de putrefação para dar meu grito atrasado, em volume provavelmente baixo. Ninguém me ouvirá, certamente. E minha quase-crônica não terá efeito algum sobre o mundo. Não será enviada às pessoas pelas redes sociais, não chegará ao grupo dos amigos literatos pelo zap. Não tenho esse privilégio, ora vejam, e talvez isso seja exatamente uma das causas da morte tão despercebida da crônica como gênero literário que não importa a quase ninguém: quem ainda a escreve e onde. A outra razão é quem ainda a lê, que pelo jeito não lê quase ninguém que ainda escreve o que se chama imprecisamente de crônica. Mas convenhamos: é assim mesmo. A crônica deve andar tão combalida que pode ser morta assim, com um peteleco. Mas não de qualquer um. Se eu tivesse o poder de sair dizendo por aí que um gênero literário morreu (vejam, é preciso ocupar um lugar distintivo para isso), poxa, talvez não o fizesse antes de olhar ao redor. Mas não tenho poderes assim, nem tanta autoestima, daí se eu disser que a crônica (ou o conto, por exemplo, para mencionar outro gênero surrado) morreu, se suicidou ou ressuscitou, arrá, tanto faz, tanto fez.

Entendi sim
Antes que, a defender o assassino, venham me dizer que não entendi o que ele poeticamente afirmou (e ainda foi com carinho), já adianto que, sim, li o necrológio com atenção e entendi a sutil argumentação. Quem teria morrido seria a crônica anedótica, atemporal, aquela que um Rubem Braga fazia, um Sabino daqui e dali, a crônica com jeito de narrativa. Também gosto. Inclusive as que tenho nas estantes andam bem vivas, ao que parece, mas já duvido. Outro dia, um livraço sobre os “sabiás da crônica” andou sendo lançado e fez a alegria de muitos leitores (e da editora). Quase ganhou um superprêmio. Mas deve ter morrido logo em seguida com os safanões do mensageiro. De fato, o que mais vemos nos jornais e nos espaços ditos de “crônicas” por aí, hoje, são textos de outra cepa: comentários, argumentações, opiniões cheias de si, pitacos (mais ou menos) bem alinhavados sobre tudo, demonstrações de cultura e cosmopolitismo, arremessos pluritemáticos com uma facilidade danada de serem levianos e mesmo descoladamente sabichões. Tá certo. Tem disso mesmo, aos montes, sob o surrado rótulo de “crônica”. Há também muitas coisas feito essas, mas boas, interessantes, responsáveis e inteligentes. Mas também há gente por aí produzindo a crônica old school, essa da anedota, do causinho, da historieta simpática com personagens e uma estrutura meio narrativa. Essa pode sobreviver ao tempo, às gerações, às colunas de internet, se não for assassinada antes por pessoas que invisibilizam o que não enxergam. E agora? Bem, não adianta desqualificar a “cronista” dizendo que ela não entendeu ou que é oportunista. A gente não cai mais nessa.

Livro natimorto
Outro dia mesmo lancei um livro todinho de crônicas, tinha até a palavra “crônicas” bem na capa! Natimorto, provavelmente, mas eu nem tinha notado. A alegria de vê-lo impresso, chegando às mãos de centenas de leitores, foi tanta que talvez tenha nublado minha visão da morte logo ali, à espreita. Achei que o volume respirava e se mexia. Por um segundo, pensei ter chegado a chorar (ele). Mas já não sei nada. A certeza das pessoas sobre a morte do gênero é tanta, e sua replicação ao infinito ajudada pelos algoritmos mais amigos de uns do que de outras, curtidores de falsas polêmicas, que chego a duvidar do que vi, do livro, de mim. Se não me dedico à crônica há mais de vinte anos, o que tenho feito então? Alguém me dê outro nome para isso, por favor. Sou “colunista”? Pode ser. É o que muita gente de fato faz, sem que o rótulo de “cronista” lhes caiba bem. Nisso concordo. Mas e quem, como eu, acha que passou parte da vida investindo numa literatura dessas cujo nome é “crônica”? E daqui para frente? Editor do Rascunho, por favor, alguma solução? Estou me sentindo numa viagem estranha com a máquina do tempo; ou morta pelas costas; ou apenas uma otária desavisada fazendo o que ninguém vê. Meus textos, será?, já têm aquele aspecto verde dos zumbis de filmes? Eu mesma ando mais para Noiva Cadáver do que para escritora contemporânea? Estou atenta.

Uma outra hipótese
Mas, felizmente, temos outra hipótese. É clássico o caso dos cronistas ou colunistas que, um dia, diante de um prazo apertado, e na falta de um assunto, escrevem sobre ela mesma: a falta de assunto. Dardejam frases sobre o branco da página, o sofrimento de não ter o que dizer, poetizam sobre o silêncio, alinhavam parágrafos sobre o vazio. Com isso, juntam o tanto de linhas necessárias para o preenchimento da coluna, eventualmente recolhem sua paga (a maioria faz de graça mesmo) e aguardam felizes pelo próximo prazo, quando esperam ter algo mais substancioso a dizer/escrever. Pode ter sido essa a motivação para um assassinato tão despropositado, a da “boa” crônica, essa que merece ser assim chamada, supostamente rara ou já extinta. O recurso retórico de se incluir entre os maus cronistas, saibam, pode colar bem. Agora, aproveitando os caracteres que me restam, vos digo: leiam crônicas, e não apenas a de toda aquela respeitável gente morta. Há gente bem viva mantendo a crônica ON. Mandaram, aliás, dizer que respiram sem a ajuda de aparelhos. E que não obedecem aos caprichos de escritores em dias difíceis.

PS: Já dei esta dica antes, mas acho que ninguém me ouviu. Editores, reúnam num volume crônicas sobre a falta de assunto e espalhem pelas escolas. Ressoarão. Mas isso só pode ser feito com boa pesquisa.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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