Calendários

A ciranda frenética dos calendários, que marcam as urgências, os compromissos e as alegrias de uma vida inteira
Ilustração: Oliver Quinto
08/10/2024

Tenho ao menos dois calendários em casa, o que minha avó chamava de “folhinha”. Um deles fica na cozinha e lhe arranco uma folha todo fim de mês. Isso costuma me dar prazer, risco um X, um gosto de vingança carcerária. O outro fica bem ao meu lado, na mesa do escritório, e anda todo rasurado, semana a semana. Nele visualizo o semestre inteiro. Hoje, por exemplo, posso ver julho, agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro, os três primeiros riscados de marrom escuro, os três últimos apenas com as marcações de feriados (escassos neste 2024) e algumas viagens de trabalho.

O calendário do escritório faz as vezes de agenda, de certo modo. Só de olhar, sei o que passou e o que me espera. Controlo a ansiedade e a sensação de que não darei conta rabiscando-o com marcadores rosa, azul, amarelo e laranja. Minhas férias, por exemplo, deslocadas em relação ao calendário escolar oficial, estão em laranja, cor que acho que escolhi para me animar. Não sei se teve ou terá esse efeito. Os dias em rosa são finais de semana e feriados, chamam mais a atenção do que todos os demais dias, essa roda dentada da qual não conseguiremos escapar nunca. E não conseguimos mesmo.

A folhinha da cozinha serve para a comunicação com outras pessoas. Viagens circuladas de preto, dias em que estarei fora e nos quais precisarei contar com a colaboração de quem fica. Feriados também, a fim de deixar combinado que alguém deixará de vir, que acordarei tarde, que sairei com amigos e amigas. Às vezes, escrevo nas laterais, deixo bilhetes colados, uma lista de compras e outra de tarefas. Eventualmente, dinheiro trocado. Paguem o gás, o motoqueiro vigilante, o cara do mercadinho.

Embaixo da mesa, em um gaveteiro de rodas, está meu planner. Ele, sim, mais detalhado, me dá a sensação de que minha vida terá cadência e os compromissos serão honrados. Cores, marcações, adesivos, colagens, anotações, lápis, carimbo, caneta, cola. É um espaço de patchwork, retalhos da vida emendados por necessidades, encomendas, desejos, objetivos, mas nada muito determinado. Uma espécie de palimpsesto no qual lápis são apagados por borrachas que deixam borrões, canetas passam por cima de cores, palavras circuladas são escondidas por adesivos de plantas ou de lojas.

No exato momento em que escrevo este texto, setembro está por um fio. Encontros acontecidos, viagens de ida e volta, trabalhos entregues, reuniões finalizadas (geralmente pouco efetivas), férias deslocadas, a promessa de um último dia que cairá numa segunda-feira. O quadrado do dia 30 está quase vazio, não fosse uma anotação a lápis, fraca, sem força, como se eu tivesse dúvida de anotá-la ali, ou não quisesse cumprir algo, ou duvidasse de que fosse possível. Bolas adesivas de cores fortes marcam dias de trabalho com hora marcada, inflexíveis. Algumas foram arrancadas e deixaram marcas no papel. Uma flor, um prédio de São Paulo, um desenho da Frida Kahlo, Garfield comendo um livro, alguns aniversários anotados (dei os parabéns em todos os casos, 100% deles por WhatsApp) e está escrito que uma amiga deve vir a Belo Horizonte. O que isso quer dizer? Que devemos nos encontrar?

Outubro não está visível. É preciso virar a folha, passar a página, deixar setembro para trás, encarar um mês de volta às aulas, de precariedade, novos encontros, novos deslocamentos, uma grande amiga faz anos e o aniversário dos 80 do meu pai. Esse dia vai chegar. É como se passássemos a vida contando. Divertiu-se, exagerou, fumou, bebeu, mas continua aí na marcação dos dias, pensando em festa e em celebração. Esperamos sempre a vida inteira para estar onde estamos, com quem é importante estar. Quantos calendários joguei fora depois de todas as comemorações, de todos os compromissos, de todos os encontros e remarcações, esperas e desesperos? Meu pai só fará 80 anos uma vez. Está lá, anotado, com adesivo de coração, com taças, copos de cerveja, estrela. A festa já começou no calendário, marcada faz tempo, já posso ouvir a música alta. Daqui, espio outubro, parece ainda por acontecer. Logo será passado, irrepetível, embora as folhinhas se pareçam muito umas com as outras. Aparências confortantes, a vida de uma talagada só, sempre única.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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