Caí no Enem

As angústias de uma mãe na correria com o filho e a surpresa de ver seu texto constar das provas deste ano
Ilustração: Eduardo Mussi
14/11/2023

Caí no poço, quem me tira? Alguém aí se lembra disso? Caí no Enem, quem me tira? No domingo, a única coisa que eu conseguia pensar, com alívio, era que fez um ano que eu vivi essa tensão com meu filho. Foi a vez dele, que passou alguns anos odiando o ensino médio, louco para alcançar outro patamar (de ódio?), enquanto eu fazia as contas para ver onde isso ia dar. Os dias de prova do Enem foram de ansiedade, mais para mim do que para ele. Levei, busquei, orientei, instruí, dei o beijo na testa e entreguei para Deus e o Inep. No primeiro domingo de prova, fiquei numa pilha tão grande que resolvi passar a tarde dormindo. E consegui (porque sou boa nisso). A ideia era atravessar o tempo, furar a espera e acordar apenas na hora de buscar o candidato ao curso de Psicologia. Acordei um pouco antes do que queria, troquei de roupa e retomei o caminho do campus onde ele estava. Morri duas vezes de ansiedade. Esperei no local combinado e ele não vinha. Passava gente, passavam grupos de jovens comentando a prova, pais e mães querendo saber de tudo, um povaréu com a prova dobrada na mão, vinha o Papa e ele não chegava. Lá ao fundo, finalmente, já noite, percebi o andar arrastado do meu piá. Lá vinha ele, na maior folga, com cara de sereno, enquanto eu me mordia inteira por dentro. Esse trem de mudar de fase com os filhos é, ó, te contar, para os fortes. E aí? Conta? Como foi? Fácil ou difícil? Fez tudo? E a redação? Porra, que tema osso! Mas o que você escreveu? E as questões? Deixou algo para trás? Tá seguro? Esperançoso? Fala, porra!

No domingo seguinte, o segundo e último de prova, resolvi mudar o esquema. Levei, busquei, mas arranjei o que fazer e tentei não morrer de novo. O cara foi, complicado, dia de exatas, fé em Deus, pé na tábua, são Longuinho, são Jorge, são Judas Tadeu. Olhei com amor para a imagenzinha da Nossa Senhora Desatadora de Nós que tenho num pequeno e discreto altar no quarto. Bora lá. Vai, garoto. Noite entrada, lá veio ele de novo, bonachão, com cara de que nem sentiu cócegas. E seguiram-se dois ou três meses de completo limbo, enquanto os corretores de redação decidiam a vidinha do meu garoto. Eu, de novo, mais ansiosa do que ele.

No domingo que passou, só consegui pensar nisso e sentir um alívio enorme. Não tinha de levar nem buscar. Não tinha de dormir a tarde inteira para evitar a espera. Não tinha mais filho candidato a uma vaga. Não tinha mais de fazer almoço mais cedo. Aquele estômago que ardia. O meu. O dele ele encheu com água e biscoitos. Que vontade de escrever um palavrão. Cês me ajudem aí e pensem em um bem sonoro. Tenho meus preferidos para esta ocasião. Passou. Tudo passa.

E depois de sentir este alívio e de renová-lo várias vezes no domingo, apenas sabendo que meus alunos estão atentos ao Enem, começaram a me enviar mensagens sobre o tema da redação (ah, o cuidado invisível, a trabalheira das mulheres, as mulheres invisíveis) e sobre uma questão que vinha, opa!, com um trecho de texto meu aqui do Rascunho. Arrá! Se meu filho estivesse lá, não teria o direito de errar. E não apenas porque é uma questão com texto da mamãe, mas porque é filho desta mãe, esta que cuida, cuidou e cuidará, esta que deu conta de quase tudo sozinha. A mãe que resolveu os problemas da escola; que ajudou a estudar para todas as provas; que proveu, alimentou e curou; que mandou bem nos tratamentos ortodôntico e dermatológico, quando a adolescência fez seus primeiros estragos; que correu atrás da professora particular de matemática ano a ano (alô, Marcelli, alô, Renata!); que trouxe o lanchinho; que passou remedinho; que lavou e trocou a roupa de cama; que levou, buscou, esperou por horas do lado de fora; que dormiu para conseguir aguentar a ansiedade de querer muito um futuro legal para um filho. Era a mamãe que estava lá. E é ela que está. Já disse a ele: estarei presente quando você celebrar cada uma das suas conquistas. E estarei também quando não rolar.

Acho que envelheci uns dez anos no ano passado. A metade disso nas duas semanas de Enem. Sobrevivi. Agora desfruto dos papos-cabeça do universitário que acha que já sabe tudo. Logo perceberá que não sabe da missa a metade, um quinto. Mas deixa ele. Sigo aqui como este amortecedor invisível que alimenta, cuida, cura, leva, busca e toca para a frente. Feliz por ter sido, um dia, importante assunto de prova.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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