A vegana futura

As inquietações de uma menina no açougue, diante de um cardápio de horror: boi morto, porco assassinado, frango esquartejado
Ilustração: Eduardo Mussi
12/03/2024

Detesto ir ao supermercado. É o tipo de tarefa, no entanto, da qual não escapo de forma alguma. O abastecimento da casa é uma das minhas incontáveis obrigações de mãe solo, dona de casa de tempo integral etc. Por extensão, também não curto as visitas à padaria, ao sacolão e ao açougue. Este último então só me vê de raro em raro, quando realmente não tem mais condição em casa e já estamos quase nos mordendo uns aos outros (e somos poucos).

Bem, dá que um dia desses tive de passar uns bons minutos no açougue da esquina de casa. Fui de má vontade, mas o negócio era ir antes do Carnaval, momento do ano em que me sinto sitiada e que me entoco dentro do mais fundo de casa. Para isso, eu precisava de provimentos suficientes para cerca de uma semana, o que incluía proteínas.

Cheguei, peguei uma boa fila de provedores preocupados como eu, a maioria gente muito mais velha e cheia de exigências quanto aos cortes, à embalagem etc. Meu caso era mais prático. Na minha vez, um dos simpáticos açougueiros (eles dariam uma charmosa banda de música) me olhou nas pupilas e disse: “querida, já foi atendida?”. Por mais fofos que eles sejam, não gosto de estar ali, então tratei de dizer logo: “quais carnes suínas você tem hoje?”. Levei uns segundos numa troca de ideias sobre picanha e lombo; optei pelo mais barato, que também era o mais rápido de cortar. Depois resolvi pedir frango, mas aí entramos num acordo sobre desossar coxas; e depois a sobrecoxa, que também pode dar um bom assado. Alguns desses em bifes finos, para renderem mais (dias) e aí duas ou três palavras sobre o frescor daquelas carnes. E mais gente fazendo fila, as exigências, uma senhora furando tudo, as dúvidas, outros simpáticos açougueiros sendo queridos com as demais pessoas, eu paquerando a bancada de legumes logo atrás, um tempero novo, enquanto o rapaz cortava a carne com uma faca quase mágica (em casa, levo minutos brigando com cada nervo).

É bom que se diga que essa cena se passa num bairro de periferia, nada nem parecido com açougues da zona sul ou com a sofisticação das butiques de carne. No entanto, é, na região, um estabelecimento considerado caro. De fato é. Mas vou porque é o mais perto, o mais limpo e o que tem os açougueiros mais ágeis da microrregião. São critérios importantes para uma pessoa apressada, que não acha prazer em fazer as compras do mês, da semana etc. Estou lá.

Mas uma crônica pode nascer da fila do açougue. É o que venho dizendo desde o texto passado, neste Rascunho, e que reitero sempre. Enquanto estou parada diante do balcão de vidro resfriado, tentando observar os movimentos precisos e lancinantes do açougueiro que se dedica ao meu lombo, chegam ao meu lado um homem e uma criança. O rapaz deve ter pouco mais de 30 anos e certamente é o pai da meninota de coisa de 7. Ele de bermuda, chinelo, boné, cara de quem obedece a uma ordem expressa da esposa, que ficou em casa preparando o almoço; a garotinha provavelmente saiu de vestidinho arrumado a passear com o pai, que teve a função de tirá-la de casa um pouco, deixar a mãe trabalhar, alívio no falatório, um momentinho de graça e rua com papai trabalhador, assim espero. E eis que começa um diálogo entre os dois, assim que a menina põe os olhinhos curiosos nas carnes penduradas dentro do vidro, bem na sua altura:

— Papai, o que é isto?

— São as carnes que vamos comprar.

— Mas essas carnes são de bichos mesmo?

— São sim. São carnes de boi, porco…

O silêncio dela não era exatamente horrorizado. Ela observava, encarava as peças vermelhas dentro do balcão, sem tocar em nada, mas com um ar de suspeita.

— Papai, mas eles mataram esses bichos todos?

— Sim… mataram para a gente comer.

— Você sabe como eles mataram eles, pai?

— Isso eu não sei…

De certo modo, o pai cortou o assunto ou alguém o interrompeu, talvez o açougueiro fofo. A menina manteve os olhos no que ela enxergava claramente como bichos assassinados. Eu observava a menina como quem vê uma verdade que minha geração não tinha olhos para ver. Não era assim. Ou era exótico demais. Hoje, é a primeira pergunta que a meninota faz, assim que chega ao balcão do açougue, esta experiência nova e impactante. O pai não sabe explicar, e é isso o que eles vão comer no almoço. Boi morto, porco assassinado, frango esquartejado. O cardápio dela é de horror.

De fato, ver aquelas postas grandes de carnes de partes de corpos não é agradável. E vem junto o cheiro de sangue e azedume, a vemelhidão que suja os aventais daqueles homens, e um deles vem, de vez em quando, e passa um pano no vidro embaçado, a fim de expor melhor e sempre os pedaços de coxa, barriga, lombo. E eu, então, me lembrei do meu horror, quando criança, ao me deparar com cinco línguas de boi penduradas pelo talo, nesse ou noutro açougue próximo de casa. E de quando deixei de comer porco depois de ver um leitão inteiro sendo assado, com seus dentes e seus pelos. Não foi suficiente para me tornar uma ex-carnívora, mas poderia ter sido. Um espetáculo mesmo, mais legal, é ver essas meninas que fazem as perguntas certas e desafiam os fatos.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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