Caí no Enem de novo. Já tinha rolado essa conversa por aqui, em novembro de 2023. Só que agora foi diferente: virei a “tia do textão” da prova. Pela primeira vez, o Enem quicou na área com um texto de página inteira (uma crônica do Rascunho, aliás) e propôs cinco questões, que abordaram desde a definição e a identificação do próprio gênero discursivo até a compreensão de partes relevantes do que foi argumentado. A despeito do besteirol divertido que vi e ouvi sobre o fato, fiquei muito interessada, como professora que sou, na indução importante da leitura de textos inteiros, não apenas de fragmentos, como exigência ao final de toda a escolarização básica. Parece pouco e óbvio, mas é muito no Brasil, onde os resultados de leitura precisam melhorar consideravelmente.
Há escolas que só fazem o que o Enem “manda”. Se é para ler trechinho, pedacinho e fragmento, vamos assim; se é para ler com mais complexidade, vamos assado. A escolha por um texto de página inteira (embora adaptado) foi valorizada pelas cinco questões relativas a ele, o que “obriga” que o concluinte do Ensino Médio dê atenção aos itens, dedique-se à leitura e à prova. Se fosse apenas uma questãozinha, muita gente chutaria ou saltaria, tal é a preguiça de pensar/ler misturada à correria para finalizar a extensa prova dentro do tempo regulamentar.
Naquele domingo, eu andava meio off-line, descansando da inglória labuta, quando comecei a receber mensagens de WhatsApp por todo canto. Era a prova, eram as fotos da prova, comprovando que meu texto havia sido lido por milhões de jovens. Para uma escritora, isso é tão raro quanto honroso. Para a professora, foi preocupante. O que será que minhas turmas estão aprontando? Uma infinidade de mensagens de texto e áudio começou a chegar. Curiosidades interessantes que passo, de uma vez, a responder: Não, ninguém avisa; não, não sabia; não, não ganho dinheiro algum por isso; não, não fiz a prova; sim, talvez eu faça as questões para ver se eu mesma acerto (fiz e acertei); não, não acho que minha vida vá mudar em grande coisa; não, não foi a primeira vez; é verdade, jamais serei lida por mais de três ou quatro milhões de pessoas.
Recebi desde emocionados parabéns até comentários dizendo que, naquele domingão, fiz muita gente sofrer. Sorry, galera, mas é isso, é o mínimo que a escola deveria ter garantido a vocês. Vi memes e soube de debates acalorados em grupos de zap. É claro que não entrei em nenhum deles. Parabenizei meu editor do Rascunho pelo feito, bem anterior, de manter o espaço dos cronistas neste jornal. Coisa rara. Não fosse a escola (e o Enem), a crônica já teria sucumbido, como, aliás, vaticinam escritores por aí, de vez em quando. Ela vive, minha gente. E as cronistas, também.
Minha sala, minhas regras
Sou também professora da terceira série do Ensino Médio em uma escola técnica federal. No momento em que virei a “tia do textão”, só pensei nos meus alunos e alunas. O que será que sentiram e pensaram? Logo me lembrei: não vão se dar conta. A fonte indicada na crônica trazia meu nome abreviado: Ribeiro, A. E. Isso diz pouco; para alguns, nada. A maioria dos meus estudantes desconhece minha persistente carreira de escritora real, assim como a maior parte da população desconhece meus seis livros de crônicas bem editados por casas pequenas (editoras grandes costumam evitar o gênero). Morri de ansiedade para encontrar logo, na semana seguinte, meus meninos e meninas tentantes à universidade. E encontrei.
Logo na porta da sala, escutei o burburinho sobre o textão da professora. As perguntas pulularam, aquelas quase as mesmas a que já respondi ali em cima. Perguntaram o que eu senti, e eu devolvi a pergunta. Ninguém sacou, durante a prova, que o texto era meu, que aquela Ribeiro era eu. Só se deram conta quando, depois do exame, abriram seus grupos de zap e a informação já circulava. Espera! Mas essa é nossa professora! Deve ser engraçado mesmo. E sou professora de Redação!
A primeira coisa que eu quis saber foi sobre o tema do ano. Consideraram bom, possível, me contaram dos repertórios que usaram, fizeram perguntas impossíveis de responder sem ler as redações reais. Medo de tangenciar o tema, perplexidade porque o Enem trocou os “desafios” pelas “perspectivas”. Sim, é nesse nível de bug. Todo mundo querendo me contar se acertou ou errou todas as questões do meu textão. Os que as gabaritaram estavam orgulhosos e quase me davam piscadelas cúmplices. Os que erraram algumas questões referentes ao textão demonstravam uma mistura de vergonha e safadeza. E nem por isso usarei textos meus em sala de aula — nem antes, nem nunca.
Das estratégias que me contaram, alguns disseram que se apavoraram quando viram o tamanhão do texto. Pularam, foram para as questões menores, as fizeram primeiro. Quando retornaram à crônica de página inteira, já estavam cansados. Não conseguiram se dedicar o suficiente. Outros (e muitos) disseram que se surpreenderam com o textão, mas encararam logo. À medida que leram, foram achando legal e fácil e bem-humorado e aí foram seduzidos. Responderam às questões e as consideraram fáceis. Acham que o Enem ainda proporá novos textões e com itens mais difíceis nos próximos anos. Além de fazedores de prova, são bons analistas.
E para tangenciar o tema
O que me anima nessa moçada é o vigor com que costumam tratar as coisas. Ao menos essas dezenas de garotos e garotas com quem convivi por um ano estiveram sempre interessados em desenvolver o melhor texto possível. Isso me dá esperança, coisa que nem sempre há no chão da escola. É uma tristeza ver gente indignada com um texto de uma página, dizendo que é imenso, enorme, quase intransponível. Ainda se fosse um tratado de psicanálise… Mas nem é. Será que o texto precisa ser proporcional à valorização da carreira docente? Outro dia, “comentaram” na Câmara dos Deputados que 65% dos professores da educação básica seriam “beneficiados” pela isenção do imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil. Cês juram que é de se comemorar? É o horror dos horrores, e lá vamos nós aos fragmentos e em frangalhos. Viva o textão!