A série The Crown, exibida pela Netflix sobre a recente monarquia inglesa, é um exemplo bem didático para entendermos o alcance das constrições impostas por um jogo de aparências social. Grande parte do que mantém o poder frente a um público repousa no mistério: podemos pensar na velha fórmula de sucesso do suspense, do esquema folhetinesco que ainda hoje domina estruturas narrativas, sobretudo populares. Mas o mistério também é a base do poder numa sociedade. Seja em circunstâncias religiosas ou políticas, segredos não podem ser desvendados, sob pena de que o respeito acabe. Penso em como isso é frágil: a veneração, o ato de admirar o que não compreendemos.
Um comentário de François Lebrun, em capítulo da História da vida privada, v.3, recorda: “Enquanto instituição hierarquizada, a Igreja sempre desconfiou das manifestações de devoção pessoal consideradas excessivas e dos consequentes riscos de aventurismo espiritual; com muita frequência parecia satisfazer-se com uma religião coletiva cujo unanimismo aparente significava, talvez, mais uma cega conformidade que o envolvimento sincero e ponderado de cada fiel”.
Via de regra, a promoção do sujeito é considerada uma ameaça para os sistemas, que preferem massificar uma multidão anônima e reduzi-la a mera engrenagem. Mesmo os modelos de liderança não podem ser inovadores, para não desestruturar os artifícios, o “teatro” que mantém hierarquias. Quando se olha a distância, parece grotesco que populações inteiras continuem com velhas ilusões absurdas, perpetuadas para garantir privilégios aos dominadores. Mas a explicação se encontra nesse mecanismo de homogeneidade: faça as pessoas sentirem que são parte de um bando, de um país, de uma ideia — e logo ninguém mais pensará por si, ou aqueles que o fizerem serão tão raros que permanecerão inofensivos.
A tentação da coletividade, que deve ser inclusive um traço da espécie humana (basta lembrar como as crianças são dependentes, e durante tanto tempo, se comparadas aos filhotes de outros animais), surge como isca essencial para a manutenção do status quo. Ainda que hoje exista uma sensação de que muitas vozes individuais se fazem ouvir, através do uso acessível dos meios comunicativos, uma simples observação mostra como essas pessoas, na verdade, agem como repetidores autômatos, repassando palavras (ou imagens) que vêm de outro lugar. São sujeitos assujeitados, conforme classificação da Análise do Discurso. São meras peças, que funcionam azeitadas por uma ideologia, uma crença indiscutível ou um algoritmo.
E por falar em algoritmo, a homogeneização virtual agora é uma tendência inegável.
Étienne de La Boétie, em pleno século 16, comentou sobre a mais estranha das perversões do vínculo social, a “servidão voluntária” — e, em sua época, apontava o perigo dentro dos excessos de confiança ou até das gratidões legítimas, que poderiam gerar a tirania de um sobre outros. Mas o que dizer de nosso comportamento contemporâneo, quando nos tornamos dependentes de curtidas, servis diante de desconhecidos para quem “produzimos conteúdo”, inventamos artifícios, estratagemas para agradar ou atiçar com polêmicas?
Já não temos mais autonomia ou escolha própria; inventamos nosso Big Brother particular, damos satisfação de onde estamos, com quem, e em que estado de espírito (muitas vezes, forjado). Míchkin, protagonista de O idiota, de Fiódor Dostoiévski, em determinado instante diz: “Eu tenho tempo. O meu tempo é todo meu”. Quantos de nós realmente poderíamos afirmar isso?
Claro, lembremos que numa sociedade moderna — e não somente nela — há compromissos, obrigações, deveres. Mas para além das horas com trabalho, cuidado doméstico e/ou familiar, quanto tempo sobra? E o que você faz com esse tempo? Desperdiça, investigando a vida alheia ou expondo a própria, em redes sociais que são feitas para estimular vícios, gestos inúteis e repetitivos? Ou realmente utiliza a folga para o seu prazer — que pode, sim, estar no descanso e na solidão?
Se a pandemia de 2020-21 trouxe alguma lição, mínimo oásis em meio ao horror de mortes, talvez ela esteja em torno do autoconhecimento. E não me refiro a crescimentos espirituais: desconfio do aprendizado através de modelos punitivos, e acho que se aprende muito mais sobre Deus e o amor através da alegria. A mudança que várias pessoas perceberam em si mesmas, enquanto indivíduos, refere-se a algo tão imediato e inescapável, que paradoxalmente muitas vezes se ignora: o próprio corpo.
Houve relatos sobre insônias, dores de cabeça, suores. Gente se queixando de apatia ou, ao contrário, de uma adrenalina indomável, um apetite feroz. Todos os que são deixados a sós em algum momento oscilam, estranham-se, observam-se. Examinam os humores, escrevem diários, desnudam-se em frente a um espelho ou câmera. Na falta do mundo, o território interno torna-se convidativo, explorável.
O regresso ao corpo é uma primordial conquista da identidade. Conhecer minha composição, aprender sobre os músculos, os órgãos, o esqueleto é aprofundar na experiência humana. Da mesma forma com que uma planta, pela maneira como se exibe, comunica o que está sentindo, os meus olhos, unhas, gengivas indicam como estou realmente.
Fomos muito habituados a “consertar” o que nos desagrada. Cheiros, texturas, cores são alterados por razão cosmética, e na maioria das vezes por moda, para acompanhar o que todos fazem, ou o que a cultura impõe. Nesse ímpeto de manutenção da estética, a natureza é ignorada. E a natureza sempre nos fala de mudança, envelhecimento, ciclo sazonal: coisas tão distantes do nosso eu abstrato, que aprendemos a temê-las. Qualquer transformação parece uma perda ou ruína; queremos escondê-la.
Entretanto creio que, se observássemos o nosso organismo, cumprindo a rotina de nutrição, exercícios e sono, sem pensar que são obrigações incômodas que queremos reduzir ou cumprir logo — mas que de fato são o nosso modo de existência real —, teríamos uma nova perspectiva. Talvez deixássemos de nos ver como máquinas, para lembrar que somos sujeitos e, antes disso, animais. Nossa cognição, por mais desenvolvida que seja, não nos exime do trajeto de todo mamífero — vamos do ventre ao verme. O que deixamos no planeta pode ser grotesco ou sublime, mas esse legado não se confunde com nossa essência, nem a substitui. O nosso propósito não é produzir, como as máquinas fazem. Enquanto animais, nossa primeira finalidade é existir, habitar o mundo por um tempo. E, exatamente por sermos animais, não somos descartáveis nem substituíveis: cada ser é individual.