Gatofilia

De maneira geral, o tema — assim como os gatos em si — me põe sorridente
Carl van Vechten, autor de “Peter Whiffle”
30/07/2019

O tigre na casa — uma história cultural do gato, de Carl van Vechten, é daquelas obras que a gente adquire pelo simples impulso de felicidade. Eu a li numa edição argentina, e foi a chance de conhecer este autor, nascido em Iowa em 1880. Jornalista, crítico de música e teatro, van Vechten também foi fotógrafo, atingindo — numa época analógica, lembremos! — a impressionante autoria de 15 mil retratos, conservados hoje na Biblioteca do Congresso em Washington. Dentre os que estiveram sob o seu clique, famosos como F. Scott Fitzgerald, Marc Chagall, Truman Capote, Billie Holliday e Marlon Brando. Além disso, o escritor é tido como “uma das mais iconoclastas e influentes figuras da Nova York do início do século passado — ainda que poucos se lembrem disso”.

O tom bem-humorado passa por todo este volume, que nos conquista desde o início: “Cada vez que se toca no tema, e sendo moderado pode-se dizer que surge umas quarenta vezes ao dia, invariavelmente alguém diz: ‘Eu não gosto de gatos, prefiro os cães’. A observação dicotômica equivalente, igualmente popular, predominante e banal, seria algo como: ‘Não, não gosto de Dickens, prefiro Thackeray’. Tal como o escritor James Branch Cabell deixou assentado de uma vez para sempre, ‘ao pensamento filosófico essa afirmação parece tão sensata quanto recusar um convite para jogar sinuca com o argumento de que se é fanático por arenque’.”

Há muitos outros trechos deliciosos, que fui pinçando durante a leitura. Os felinos são referidos de diferentes modos: “a pantera do lar”, “a serpente com pelos”, “um ser de veludo”, “esfinge”… E, dentro das questões linguísticas, o autor assinala como especialmente aberrante o adjetivo “gatuno”, com seu sentido pejorativo. Na verdade, “só se poderia descrever como gatuna uma criatura graciosa e elegante, digna e reservada, o epítome da beleza, o encanto e o mistério do amor”. Os estudiosos de Estilística concordariam com essa colocação.

Dedicando-se a uma pesquisa sobre a presença felina em diversas áreas — ocultismo, folclore, leis, teatro, música, ficção —, van Vechten atinge o seu ápice quando trata de literatura e gatos. Dentre muitas curiosidades, o escritor nos faz saber que no “notável volume em que Cesare Lombroso intenta demonstrar que todos os gênios estão contaminados pela loucura, o italiano dirige seus dardos para Charles Baudelaire. Motivo: escreveu três poemas sobre gatos. Mas se os três poemas bastaram para enviar ao manicômio o autor de Les fleurs du mal, a madame Deshoulières, que escreveu mais de uma dúzia, a Heinrich Heine e a Joseph Victor von Scheffel teríamos que amarrar com camisa de força e aplicar-lhes a cura da água!”

Talvez Carl van Vechten nunca tenha ouvido falar de Nise da Silveira — senão, com que prazer citaria sua medicina, em tudo contrária à agressividade das propostas lombrosianas! A psiquiatra brasileira, além disso, enxergou de forma pioneira a importância dos animais como auxílio terapêutico. E, ultrapassando este aspecto “utilitário” de sua presença, Nise escreveu um livro precioso: Gatos, a emoção de lidar. Nele, por exemplo, ressalta o repúdio que Montaigne tinha, retirado no seu castelo a escrever ensaios (na companhia de sua gata), a “essa realeza imaginária que o homem atribui a si próprio sobre as outras criaturas”. E acrescenta: “Posição, portanto, oposta à de Descartes, nascido no fim do mesmo século em que nasceu Montaigne. Para Descartes, só o homem pensaria e vivenciaria sentimentos. A cruel visão cartesiana lisonjeia a arrogância do homem. Por isso predomina essa vaidade no homem até hoje”.

Bem antes que o termo especismo fosse cunhado, para se referir à discriminação praticada pelos humanos contra outras espécies, Nise da Silveira já — por sua inteligência e sensibilidade — lamentava que Montaigne fosse menos seguido que Descartes.

Sei que existem vários outros livros sobre gatos, e prever que encontrarei ainda diversos títulos sobre o assunto me faz antecipadamente feliz. De maneira geral, o tema — assim como os gatos em si — me põe sorridente. Por causa dessa descontração involuntária, inclusive, eu me tornei amiga de muita gente. Fala-se em gatos: isso me leva subitamente a conversas desenvoltas. Aliás, sempre perco a timidez se vejo alguém com um bicho; faço perguntas, papeio nem que seja por um minuto.

Entretanto, descobri que há quem se aproxime de gatos por motivo torpe. Mais de dez anos atrás, alguém que conheci — e que me procurou como se eu pudesse lhe passar “fórmulas” para prosperar na literatura — essa pessoa (que até hoje, pelo que sei, investe lamentavelmente no projeto de se tornar best seller) enfiou na cabeça que o êxito de algum modo estaria associado a gatos. “Com gatos em casa, você parece uma autêntica escritora”, disse, e depois de algum tempo — embora preferisse poodles —, a tal figura me informou por e-mail que havia adotado um casal felino. A mensagem tinha um tom triunfante, como quem põe nas entrelinhas: “Agora estou no páreo!”. Fiquei feliz pelos bichos, que já não corriam risco nas ruas, e também achei que eles poderiam servir como lição de paz, beleza e contemplação. Quanto ao sucesso que a ansiosa criatura esperava abocanhar, tive vontade de dizer: os gatos são deuses, mas às vezes — simplesmente — não querem fazer milagres.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

Rascunho