Fotografia extrema

A metalinguagem é um tipo de investigação inevitável: o artista questiona seus limites, suas possibilidades. Por que narrar? Por que fotografar?
Julio Cortazar, autor de “O jogo da amarelinha”
30/08/2019

Um dos meus grandes prazeres, durante o semestre letivo que se encerrou, foi trabalhar com os alunos de Teoria da Imagem Fotográfica os textos de Calvino e Cortázar sobre o vício em imagens. A ocasião de encontrar um artista tratando de outra linguagem criativa que não é a sua prática primordial expande reflexões de modo assombroso. Existe essa distância, o tom de estranhamento que se mantém, o passo recuado que nos faz observar as coisas sob um ângulo que os profissionais da área esquecem, por estarem completamente mergulhados no assunto. E tantas vezes na docência se perde esse ponto de vista do neófito! Um professor pode facilmente se empolgar com a própria aula e começar a falar para si mesmo, e não para os outros. Colocar-se no lugar da experiência alheia é a principal situação do magistério — e é o que permite a um professor aprender constantemente, não somente repetir palavras ao longo da vida.

E, tratando de palavras, o conto de Cortázar começa por esbarrar nas margens do indizível: “Nunca se saberá como isto deve ser contado, se na primeira ou na segunda pessoa, usando a terceira do plural ou inventando constantemente formas que não servirão para nada. Se fosse possível dizer: eu viram subir a lua, ou: em mim nos dói o fundo dos olhos, e principalmente assim: tu mulher loura eram as nuvens que continuam correndo diante de meus teus seus nossos vossos seus rostos.”

Sentir-se constrangido por uma gramática, uma estrutura que nos impõe modos de dizer, é semelhante a se ver limitado pelo corpo, único — até onde se sabe — instrumento de existência. Não há escapatória. N’As babas do diabo, essa história de um fotógrafo que é também tradutor (transitando entre o espanhol e o francês, assim como o próprio Cortázar), chega à proposta de que toda criação é uma tradução. A arte em si já traduz a realidade, as sensações. Exatamente por isso (lembremos a máxima traduttore/traditore), o exercício artístico sempre inventa, nunca é completamente fiel a nada.

Se o gesto fotográfico ainda sofre com especulações que o vinculam a um mundo real (seja lá o que isso for), Cortázar em seu texto vai além e pretende talvez investigar o “segredo sobre um segredo”, conforme disse Diane Arbus em seu conceito de fotografia. Sua história explora a obsessão de um indivíduo, que certo dia registra um jovem e uma mulher, num ato quase que de descuido — mas depois, diante da imagem ampliada, surpreende-se ao flagrar uma situação maliciosa, praticamente um crime, indicado pela cena. O conto explora nos seus melhores momentos o estado de ânimo do protagonista traduzido em imagens (que, por sua vez, são traduzidas em palavras): “O que resta por dizer é sempre uma nuvem, duas nuvens, ou longas horas de céu perfeitamente limpo, retângulo puríssimo cravado com alfinetes na parede de meu quarto. (…) tudo é uma nuvem enorme, e de repente explodem os respingos da chuva, vê-se chover longo tempo sobre a imagem, como um pranto ao contrário, e pouco a pouco o quadro se aclara, talvez o sol saia, e outra vez entram as nuvens, duas a duas, três a três. E as pombas, às vezes, e um ou outro pardal”.

A presença destes trechos nos recorda como Cortázar um dia lamentou, em entrevista a Omar Prego Gadea, não ter se lançado como gostaria à experimentação, por receio de chegar à incomunicabilidade. Esse era, conforme o seu próprio juízo, o seu maior defeito como escritor: “Não ter coragem suficiente para levar adiante experiências que entrevi no campo mental e que não levei para a escrita porque senti que rompia totalmente as pontes com o leitor” (La fascinación de las palavras).

A metalinguagem, nesse sentido, é um tipo de investigação inevitável: o artista questiona seus limites, suas possibilidades. Por que narrar? Por que fotografar? “Uma das muitas maneiras de se combater o nada”, responde o protagonista deste conto, que se revira com cada mínima escolha lexical: “Agora mesmo — que palavra agora, que mentira estúpida”. Não há o que fixe o tempo, embora se tenham criado mecanismos (como a máquina de escrever e a de fotografar) que criam esta ilusão de paralisia, ao apontar para “a vida (…) que uma imagem rígida destrói (…) se não escolhemos a imperceptível fração essencial”.

Calvino, no seu texto A aventura de um fotógrafo, igualmente se obceca pela captação do tempo. Aos poucos, seu personagem Antonino Paraggi desenvolve um desejo de controle que o leva à loucura. Começa por perceber a efemeridade do clique, que é a mesma da existência: “Um dos primeiros instintos dos pais, depois de pôr um filho no mundo, é o de fotografá-lo; e dada a rapidez do crescimento torna-se necessário fotografá-lo com frequência, pois nada é mais transitório e irrecordável do que uma criança de seis meses, rapidamente apagada e substituída pela de oito meses e, depois, pela de um ano; e toda a perfeição que aos olhos de um pai um filho de três anos pode ter atingido não é suficiente para impedir que suceda a ela, destruindo-a, a nova perfeição dos quatro, só restando o álbum fotográfico como lugar onde todas essas perfeições fugazes se salvam e se justapõem, cada uma aspirando a um absoluto próprio incomparável”.

Embarcando numa busca filosófica pela “essência” da fotografia, o protagonista passa a desenredar “o fio das razões gerais dentro dos emaranhados particulares”. Questiona se a realidade é fotografada por parecer bonita ou se, pelo contrário, a realidade parece bonita porque é fotografada — e elege uma escolha para o seu corpus de pesquisa: excluirá os contrastes dramáticos, as fotos antigas, posadas, e trabalhará somente com os instantâneos. São estes que podem garantir uma “posse tangível do dia passado”. O fotógrafo, assim, passa a ser visto como o “caçador do inalcançável”: sua utopia, por um lado, aponta para a “fotografia única”, perfeita, essencial — mas, por outro, indica a urgência de múltiplas imagens, que possam (re)construir a vida, torná-la documentada a um tal ponto que ela poderia ser eternizada.

“Tudo o que não é fotografado, é como se não tivesse existido”, admite Paraggi, num extremismo que reconhecemos facilmente hoje, nas redes sociais. O fenômeno é discutido por Fontcuberta e outros teóricos que se debruçam sobre a era da chamada pós-fotografia, quando a proliferação de imagens supera em muito o seu consumo. Mas décadas antes, Calvino já meditava sobre os limites do fotográfico, ou a falta deles: “A fotografia só tem sentido se esgotar todas as imagens possíveis”, ou seja, se cair na realidade. Isso é o que gera o colapso, a que Paraggi se entrega no final do conto: a fotografia do nada, a destruição, os fragmentos, a fotografia da fotografia (à la Sherrie Levine).

Assim retornamos à metalinguagem, vista já no texto de Cortázar e presente em qualquer aula que se queira interativa. Talvez ela seja a maneira vital de mantermos um diálogo com aquilo que concebemos e com o público — esse outro — que sempre nos justifica.

Tércia Montenegro

Escritora, fotógrafa e professora universitária. Dentre outros livros, publicou o romance Turismo para cegos (Companhia das Letras), vencedor do Prêmio Machado de Assis 2015, da Biblioteca Nacional.

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