Poesia em tradução

O texto poético não pode ser traduzido com base apenas na literalidade da palavra, elementos extratextuais precisam integrar este processo
Charles Baudelaire, autor de “As flores do mal”
01/11/2021

É sempre importante voltar à poesia quando que se fala em tradução literária. Eis aí o suprassumo de tudo o que significa a tradução, de tudo o que envolve essa tarefa sempre tão árdua e espinhosa: traduzir poesia é transportar o formato e transformar os sentidos. Não há como contornar.

Revirando os livros de minha parca biblioteca, deparei-me com a obra Poesia francesa — Pequena antologia bilíngue, com organização e tradução de José Jeronymo Rivera. São 55 poemas, de 30 autores, cobrindo a longa extensão de sete séculos de literatura. Entre os nomes mais conhecidos, figuram Victor Hugo, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine e Paul Valéry.

O livro conta com instigante prefácio do poeta e tradutor Anderson Braga Horta, sobre o qual, aliás, vou ater-me aqui. Sobre a obra em si, sobre a tradução de Rivera, deixo que o próprio Braga Horta se exprima: “Passados pelo crivo de seu lavor meticuloso, incansável, e apaixonado, os versos desses notáveis transfundem-se num português que se lhes faz congenial”.

Mas voltando ao prefácio, este começa com uma provocação: por que traduzir poesia? Poderíamos acrescentar: por que traduzir algo que é sabidamente impossível e, mais do que isso, de resultado invariavelmente controverso e imperfeito? Na poesia, será que não seria melhor, para ser desde logo sincero e realista, optar por traduzir apenas o sentido; ou senão, por transportar apenas a forma ou o som, sacrificando de vez o sentido?

Braga Horta assevera, a propósito, que “a cruel e tão bem-achada expressão italiana traduttore, traditore não se aplica tão-só aos que se atrevem a traduzir poemas, mas, decerto, a eles melhor do que a ninguém”. E contesta a própria diferenciação que acabo de fazer acima, e que é corriqueira nas reflexões sobre a tradução da poesia: “Em se tratando de poesia, como discernir entre forma e substância, ou conteúdo?”

Em seu prefácio, citando estudiosos da tradução ou com reflexões próprias, Braga Horta toca em pontos nevrálgicos da versão da poesia, lançando luzes sobre algumas das questões fundamentais da matéria. A linguagem é por si só esquiva e ambígua: impossível apreendê-la em todo o sentido. Como expressão maior dessa característica da linguagem, a poesia se revela especialmente avessa à compreensão cabal e, naturalmente, à tradução.

Diz-nos o autor do prefácio: “Ora, na poesia, em que, o mais das vezes, importa antes o clima que a informação, a sugestão que o conceito, e em que a música e a imagem sobrelevam a lógica, é preciso não apenas traduzir (ou verter): é preciso, sobretudo, recriar; ou transcriar, como querem os irmãos Campos”.

A análise do poeta e tradutor contempla, com felicidade, a essência mesma da versão de versos. O texto não pode nem ser lido, muito menos traduzido, com base apenas na literalidade da palavra. Tem que entrar nesse processo elementos extratextuais, como o clima, a música e a imagem. Elementos, aliás, subjetivos, que vão depender, em boa parte, da circunstância do leitor e do tradutor. Daí a necessidade de recorrer à criação, à invenção, à transcriação.

A tradução de poesia, mais do que qualquer outra, precisa ser um exercício vitalizante. Há que identificar no texto elementos imprevistos ou não facilmente detectáveis numa primeira leitura. A poesia é um texto vazado, esperando o preenchimento que, já na ausência do autor, deverá vir do leitor/tradutor.

Podemos terminar com a resposta à pergunta de Braga Horta que transcrevi acima. Ele mesmo responde: “Pela mesma razão por que se faz poesia”. Nada mais a explicar.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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