Paralipômenos

Schopenhauer tinha uma visão peculiar e pessimista sobre linguagem e tradução
Arthur Schopenhauer, autor de “A arte de escrever”
01/05/2022

Volto à obra A arte de escrever, que reúne ensaios escolhidos do livro Parerga und Paralipomena, de Arthur Schopenhauer, traduzidos do alemão por Pedro Süssekind. Como mencionei na coluna anterior, trata-se de textos que provocam fundas reflexões sobre a tradução e a linguagem.

Para começar, seria interessante apontar a concepção de linguagem cultivada por Schopenhauer. Segundo ele, “A vida autêntica de um pensamento dura até que ele chegue ao ponto em que faz fronteira com as palavras: ali se petrifica, e a partir de então está morto, entretanto é indestrutível, da mesma maneira que os animais e plantas petrificados da pré-história. Também se pode comparar sua autêntica vida momentânea à do cristal no instante de sua cristalização”.

A linguagem pareceria uma redução do pensamento, assim como o Logos se distorce ao verter-se em escritura. Ainda que reduzido (“petrificado”), torna-se repetível e preservável (“indestrutível”). O paradoxo enrustido nessa concepção de linguagem é claro: embora represente a redução — e mesmo a corrupção — do pensamento, é a única maneira de preservá-lo. E a escritura — representação gráfica da linguagem — é, ainda, a melhor forma de cristalizá-la, apesar da adulteração que isso acarreta.

É clara, assim, a valorização do texto como instrumento de comunicação e conservação da mensagem: “A palavra dos homens é o material mais duradouro. Se um poeta deu corpo à sua sensação passageira com as palavras mais apropriadas, aquela sensação vive através de séculos nessas palavras e é despertada novamente em cada leitor receptivo”. Há aqui um elogio, talvez não intencional, à tradução que se dá nesse processo de passagem da sensação à linguagem — com a dura ressalva que implica o adjetivo “apropriadas”.

Quanto ao passo seguinte, a tradução interlinguística, o veredicto do filósofo é rigoroso, com mais uma metáfora a acrescentar a nossa longa coleção: “Poemas não podem ser traduzidos, mas apenas recriados poeticamente; e o resultado é sempre duvidoso. Mesmo na prosa as melhores traduções chegam, no máximo, a ter com o original uma relação semelhante à que se estabelece entre uma certa peça musical e sua transposição para outro tom”.

Nota-se matiz positivo, certamente não deliberado, quando o filósofo menciona a recriação como processo indispensável à tradução da poesia. Mas a perspectiva geral é negativa, e sua postura pessimista ante a tradução e as línguas modernas — ou seja, ante o processo natural de evolução das línguas — sugere a crença numa época de ouro, retida num passado distante e idealizado.

A crítica, em geral ácida diante de qualquer versão, é acentuada no caso do tradutor que se arroga o direito de interferir no original: “…corrigir e reelaborar seus autores […] me parece uma impertinência. Escreva seus próprios livros dignos de serem traduzidos e deixe outras obras como elas são”.

Boa parte das reflexões do filósofo alemão pode-se resumir nesta visão de patamares descendentes: do pensamento à linguagem; das línguas clássicas às modernas; do alemão às demais línguas europeias; do original à tradução.

Schopenhauer tinha, sem dúvida, uma visão peculiar e pessimista sobre linguagem e tradução, e expressava suas opiniões com tintas fortes. Mas podemos concluir com uma nota positiva, embora igualmente peculiar, citando um excerto em que o filósofo aponta para o ideal, em plano quase metafísico: “… o domínio perfeito de uma língua só ocorre quando uma pessoa é capaz de traduzir não os livros, por exemplo, mas a si própria; desse modo, sem sofrer nenhuma perda de sua individualidade, ela consegue se comunicar imediatamente na outra língua, agradando tanto aos estrangeiros quanto aos falantes nativos”. Quanto haverá aqui de utopia?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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