Notas sobre o Fausto (1)

A tradução como vetor civilizatório, dando contribuição decisiva para a constituição da faceta escrita dos idiomas
Goethe, autor de “Fausto”
01/08/2023

Como já tive oportunidade de dizer aqui, as notas, prefácios e posfácios de traduções são ótimas fontes de reflexões sobre o ofício. Um bom exemplo é a versão para o português do Fausto de Goethe, pelas mãos de Jenny Klabin Segall, publicada pela Itatiaia. A 5ª edição, de 2002, conta com prefácios de Erwin Theodor e Antônio Houaiss, além de posfácio de Sérgio Buarque de Holanda. Esses dois últimos textos nos oferecem elementos instigantes sobre a prática da tradução. Vou me ater, nesta coluna, ao prefácio de Houaiss.

O filólogo e tradutor, em seu texto sobre a tradução de Klabin Segall, começa por uma visão global sobre o ofício, incluindo sua importância para o desenvolvimento das línguas e para a própria evolução da humanidade: “…é necessidade imperativa da cultura humana a partir de certo estágio de sua planetização, condição mesma para que a assimetria de desenvolvimento humano, horizontal, vertical, material, espiritual, possa ser vencida, como requisito mesmo da viabilidade da espécie”.

De fato, na Babel em que vivemos — ainda que cada vez mais mediada e mitigada pelos aparatos eletrônicos de tradução e comunicação — as operações tradutórias humanas são essenciais para possibilitar um mínimo de entendimento recíproco e a transmissão de conhecimentos e textos entre culturas, idiomas e épocas distintas.

No tocante ao desenvolvimento das línguas, Houaiss aponta que “…um número não pequeno de línguas comuns nacionais logrou ter sua primeira feição gramaticalizada através de algumas veneráveis traduções, que exatamente por suas audácias e seu disciplinamento da linguagem falada deram o cânon que pudesse ser pauta para os escritores dessas até então não escritas línguas”.

Eis aqui a tradução como vetor civilizatório, dando contribuição decisiva para a constituição da faceta escrita dos idiomas. Interessante o binômio “audácia e disciplinamento” mencionado por Houaiss, que remete a duas características encontráveis na prática da tradução, em que se mesclam a inovação, aliás muitas vezes resultado de pura necessidade, e a normatização, como elemento de coesão e estabilização, ainda que temporária, de uma língua.

Houaiss trata também das dificuldades inerentes ao ofício tradutório, analisando, em primeiro lugar, o obstáculo imposto pela multivocidade, segundo a qual “a cada signo corresponde não apenas um conceito, mas este com franjas conceptuais contíguas ou mesmo vários conceitos, sem que esse tipo de correlação numa língua encontre paralelismo de correlação noutra língua”.

Essa natureza multívoca das línguas já aponta para a existência de abundantes possibilidades de tradução entre idiomas para cada palavra dada. Mas, como comenta o dicionarista, as dificuldades vão muito além quando se insere o elemento de interpretação dentro da mesma língua, o que provoca um aumento exponencial de possibilidades de tradução de uma só palavra ou expressão.

Houaiss indica, ainda, um terceiro nível de dificuldade, gerado pelo elemento psicológico da linguagem, “vivida como coisa afetiva, sentimental, sonora, lúdica, física e espiritualmente expressiva de estados emotivos, sentimentais, para-racionais, irracionais”.

Quando se juntam esses três níveis, chega-se a um panorama dramático em que a transposição do texto noutra língua — em especial da escritura criativa, literária — torna-se praticamente impossível. E é aí que se vive, em toda sua intensidade, o verdadeiro milagre da tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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