Máquina de pensar

A rapidez dos tempos atuais e as múltiplas possibilidades que a tradução oferece à permanência dos textos
Paulo Leminski, autor de “Anseios crípticos”
01/09/2022

A obra de Paulo Leminski contém elementos que resvalam nas questões de tradução, quando delas não tratam diretamente. Lendo o Roteiro literário Paulo Leminski, de Rodrigo Garcia Lopes, publicado pela Biblioteca Pública do Paraná, me deparei com alguns desses elementos, que passo a explorar a seguir.

Podemos começar por reflexões sobre o ato da leitura, sobre como esse ato afeta o próprio original e, naturalmente, a subsequente tradução. Em sua coletânea de ensaios Anseios crípticos 2, Leminski apontava, ao enxergar nos textos simbolistas a antecipação do princípio da incerteza de Heisenberg: “o observador, ao observar, perturba a coisa observada (ler = escrever)”.

A cada nova leitura, ainda que do mesmo leitor, um novo texto incidental. É como se a escritura, no contato com o leitor, se reproduzisse, proliferasse, gerando novos e impensados sentidos; gerando novas alianças circunstanciais entre palavras e significados. E, nesse contato, saem modificados texto e leitor: novas cicatrizes no papel e novas memórias na mente.

Ainda sobre essa vinculação tênue e tensa entre leitura, escritura e tradução, Leminski propunha, em carta de 1978, “Precisamos recarregar nossa poesia com a única coisa que temos. O hoje. Densa de hoje, ela tem chance de ficar. Significar, se multiplicar e frutificar em inúmeras leituras”.

Abstraindo a questão da substância mesma da poesia, me atenho à reflexão sobre a multiplicidade de ramificações interpretativas que essa nova escritura permite. E quanto mais perdura o interesse no texto, de fato, maior é a chance de diversificação de perspectivas sobre ele. Maiores, portanto, as possibilidades de distintas traduções, conforme as singularidades das leituras.

E, atentos ao presente — na verdade, ao hoje leminskiano de 1985 —, nos sentimos mergulhados “…na era da citação e da tradução. A recuperação do já havido”. Pois “Tudo já foi feito, tudo já foi dito”.

Talvez, na verdade, tudo ainda reste por ser dito, pois as possibilidades são infinitas. Mas certamente estamos, cada vez mais — diante do aumento vertiginoso do acesso à informação —, na era da citação e da tradução. A produção da linguagem é acelerada, flui aos borbotões, enquanto a tradução — cada vez mais mecanizada — trabalha freneticamente para sua disseminação em outras terras e idiomas.

Esse ritmo frenético, que Leminski já antecipava em 1985, em era pré-internet, contrasta com uma imagem panorâmica mais lenta, mas muito mais ampla, retratada no poema Aviso aos náufragos: “Palavras trazidas de longe/ pelas águas do Nilo,/ um dia, esta página, papiro/ vai ter que ser traduzida,/ para o símbolo, para o sânscrito,/ para todos os dialetos da Índia,…”.

O poema remete à tarefa compassada, constante e inescapável da tradução, como transmissora de significados remotos, como único meio de acessar um antigo original. A lenta evolução do texto caminhando lado a lado com a lenta evolução do próprio ser humano.

Finalizamos com uma reflexão de Leminski sobre a possível perpetuidade do moto-pensamento plasmado em texto, extraído de O resto imortal, de 1986: “Queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquinas objetivas, fora de mim, sobrevivendo a mim. […] Eu precisava de um texto pensante. Um texto que tivesse memória, produzisse imagens, raciocinasse. Sobretudo, um texto que sentisse como eu”.

Seria, quem sabe, uma máquina de pensar inscrita no papel, escritura que induzisse a reflexão. Escritura que se autotraduzisse, perpetuando-se ao cristalizar, de forma dinâmica, a ideia original. Um artifício, ainda que utópico, para vencer o tempo devorador de textos e seus sentidos.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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