Ritmo

Uma das boas práticas, para ficcionistas iniciantes — e não só — é a leitura em voz alta de suas próprias narrativas
Ilustração: Eduardo Souza
01/05/2022

1.
É possível que um ficcionista passe toda sua vida sem dar por ele: o ritmo que impõe às suas frases. Como se trata de uma palavra plurivalente do ponto de vista semântico, vamos entender “ritmo”, aqui, como a relação entre o material narrado e a maior ou menor rapidez com que o leitor a percebe. Tudo parte do princípio de que persiste, subterrâneo, o hábito ancestral de ler em voz alta; não esqueçamos: a leitura silenciosa é uma conquista da cultura que se costuma a atribuir, com boa dose de incerteza, a Santo Ambrósio.

2.
Não é intenção desta coluna entrar em aspectos fonéticos ou fonológicos, mas, apenas, dizer algo de útil a quem escreve ficção ou está à busca de uma melhor expressividade às suas narrativas.

3.
O texto escrito é coisa nova, novíssima, em termos históricos. E os primeiros, isso avançando longamente até o século 18, apresentavam uma pontuação anárquica, ou sequer tinham pontuação. Os textos medievais, por exemplo, eram um continuum de frases que se emendavam umas às outras; a leitura ficava por conta de quem tinha de lhes decifrar algum sentido. A conhecida carta de Pero Vaz de Caminha, em sua versão original, é uma verdadeira confusão sintática, e isso explica as adaptações que sofre, tendo como objetivo dar-lhe um ritmo adequado ao leitor de hoje.

4.
Falamos em sintaxe, porém não exatamente sob o aspecto linguístico, mas, mais adequadamente, gramatical, um domínio conhecido de quem teve a oportunidade de transitar por uma escola. Essa gramática nos ensina muitas coisas que jamais esquecemos, tal como a básica regra: não se colocam vírgulas entre sujeitos e predicados. Já aqui vamos em busca do que funciona e do que não funciona no texto literário; daí que temos de nos despir das regras mais duras e ir ao encontro, ou melhor, ir à busca de criação de recursos que façam nosso texto mais expressivo. E é disso que falamos quando falamos em ritmo.

5.
Refinando nosso campo cirúrgico, vamos pensar no que se está narrando, e mais ainda, na rapidez ou lentidão de uma cena ou de um sumário. Uma narrativa não tem o ritmo de uma marcha militar 1-2- 1-2. Temos momentos em que a personagem está mais reflexiva; noutros, a personagem está em ação, e, por vezes, em ação frenética. Nossa marcha militar não resolverá a necessária adequação entre texto e seu conteúdo. Desde que foi inventada a pontuação, os ficcionistas procuraram subvertê-la, não por uma insurreição infantil, mas porque precisavam de maiores recursos para dar conta da expressividade pretendida.

6.
O cinema, como sempre, tem muito a nos ensinar quanto às soluções técnicas que envolvem a gramática narrativa. O espectador de hoje sabe perfeitamente que, nos momentos reflexivos a câmara estaciona, tal como faz Andrei Tarkóvski em O sacrifício, ou Lars von Trier, no início de Melancolia. Ou os clássicos da Nouvelle Vague, com Agnès Varda, Resnais, Truffaut, Godard. Já hoje, salvas as exceções que o cinéfilo adora, predomina um ritmo célere, com tomadas de poucos segundos, e isso porque privilegiam-se as ações agilíssimas das personagens. E como tudo que se refere à estética, isso não é bom nem mau; é o que é. Cabe ver o que podemos aprender disso.

7.
Em relação à narrativa literária, temos a considerar cenas que desejamos lentas, mas não devemos, ou não podemos, punir o leitor com longas descrições de espaço nem de gestos, ou, a morte da ficção: com reflexões e evocações estáticas da personagem. O que podemos é dissimular tais momentos, de modo a que a lentidão seja sentida, mas não “lida”. Aí é que entra a técnica do escritor profissional, que tem uma caixa de ferramentas à disposição e, dentre elas algumas enferrujadas, tais como a forma infinitiva do gerúndio [“a cantar” em vez de “cantando”]. A par disso, do ponto de vista sintático, poderá usar mais períodos conectados por subordinação do que períodos conectados por coordenação, e mais extensos do que costumamos usar. A melhor estratégia, depois dessas, é utilizar vocábulos que denotem lentidão, como caracol ou século. Justo contrário acontece com as cenas de ações rápidas, em que faremos predominar frases mais curtas, bom como a coordenação sintática e palavras que denotem agilidade, como raio ou queda. Aí entra a imaginação e o conhecimento de quem escreve.

8.
[Um bom dicionário é de grande ajuda, e não há vergonha em que ele nos lembre do que já sabemos. Grande papel desempenham os dicionários analógicos, que apresentam as palavras e expressões inseridas em seu campo semântico, independentemente da categoria gramatical a que pertencem. Um desses é o Dicionário analógico da língua portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, com prefácio de Chico Buarque, no qual o grande artista diz da utilidade dessa obra para o acabamento de seus romances e letras de música. Experimente abrir o verbete número 31, “Grandeza” para assombrar-se com as quantas páginas a que ele nos leva].

9.
Nem tudo é tão matemático, porém; uma ação brevíssima pode ser contada em 10 páginas e uma ação lenta pode transcorrer em apenas cinco linhas; a questão, como dito no parágrafo 7, é levarmos o leitor a sentir a lentidão ou a presteza, independentemente de o texto ser longo ou curto. O ficcionista é que, considerando o conflito, determinará qual a natureza da sensação que deseja percebida, e que nem sempre pode ser definida como agilidade ou lentidão, mas que podem ser consideradas ainda a hesitação, a ênfase, a dúvida, circunstâncias que estão presentes em quaisquer cenas narrativas. Essas zonas crepusculares fazem a delícia do leitor e exigem a habilidade do escritor.

10.
Uma das boas práticas, para ficcionistas iniciantes — e não só — é a leitura em voz alta de suas próprias narrativas. Reiteramos o já visto noutra coluna: ler em voz alta foi um hábito que persistiu até a Idade Média; não se lia de outra forma. Com isso, será recuperada a “presença física”, [ou fonética] do texto, sendo possível dar-lhe o ritmo mais adequado à matéria de que trata. Imagino que aquele leitor “antigo” não lia da mesma forma a descrição de uma batalha da Ilíada ou um texto de amor de Ovídio. Pode não ser uma solução absoluta, mas por certo propiciará, a quem começa, a ideia da inelutável modalização das sentenças e das palavras. Talvez isso implique romper ad hoc com a gramática vigente.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho