1.
Vezes sem conta os ficcionistas são procurados por leitores que têm histórias para contar e, especialmente, para escrever. Escritores são pacientes com as histórias alheias. Em primeiro lugar, porque costumam ser gentis, mas, não menos importante, porque temem passar à posteridade como aquele convencido que desprezou conhecer uma obra-prima quando esta era apenas uma ideia. O quadro é conhecido: a um sinal de aceitação do escritor, o aspirante a ficcionista dedicará uma boa meia hora para contar a história que pretende transformar num romance. E será entusiasmadíssimo nisso. A história, assim, começa a desenhar-se: como será o primeiro capítulo, o segundo, o miolo da obra, as mil peripécias do enredo, e, por fim, como ela terminará. “Então, que tal lhe parece?” — é a pergunta que se segue. Depois de um silêncio para pensar, o escritor tem o recurso às perguntas genéricas, como a focalização (primeira ou terceira pessoa? — nos dias que correm quase sempre será a primeira), a época em que se passa a narrativa, os espaços a serem percorridos, etc.; mas aos poucos, inexorável, se aproxima a pergunta: … e a personagem central? “Mas” — explica o futuro romancista, cheio de ideias e um pouco chateado pela má memória do escritor — “eu penso já lhe ter dito, é Mariana”. Claro, o nome… Mariana… bonito… mas como é Mariana? Segue-se estranheza, inquietação. O aspirante a escritor logo passará do desconforto ao entendimento: sim, ele precisará conferir densidade humana à personagem, embora não seja apenas isso. Já outro poderia argumentar que se trata de uma preocupação inútil, pois confia em que a história, de tão boa que é, encarregar-se-á disso. Pronto: eis aí a fonte de tantos equívocos, e que levam a resultados desastrosos. E por que acontece o desastre? A razão é simples: a história, de antemão fixada, com suas reviravoltas episódicas, com ações repentinas, que talvez só façam sentido na cabeça de quem as idealizou, constitui-se no pior instrumento para compor toda a complexidade dramática da personagem, porque ela, vivendo contínuas situações, tentando movimentar-se entre armadilhas de um enredo, agirá de modo reativo, circunstancial, esquemático, falso. O escritor, tão empenhado em encaixar sua personagem num enredo “externo”, não conseguirá conferir-lhe uma personalidade consistente, autônoma, e isso pode comprometer todo o projeto.
2.
A personagem não é atriz de um roteiro que lhe foi preparado pelo escritor; não é um asséptico manequim de loja, de olhos pasmos e rígidos braços e pernas, que conduzimos de capítulo a capítulo e que se veste com as roupas da moda. A personagem não “vive uma história”; a personagem “cria” a história que vai viver — e veremos isso no parágrafo 4. “Viver uma história” é comportar-se como o manequim. Tudo isso tem uma base próxima da tautologia: depois de algumas frustradas experiências disruptivas que frequentaram a literatura do século passado, a personagem passou a ser entendida, tanto pelos estudiosos como pelo público, como um ser humano, no sentido de que o leitor espera que ela se comporte humanamente, com tudo o que o humano implica: dores, alegrias, erros, ridículos, paixões, perfídias, generosidades. O leitor quer encontrar na personagem uma parceira de existência, que talvez viva experiências que a ele são interditas. Os deuses gregos só se tornavam críveis quando, no teatro, externavam emoções comuns aos mortais.
3.
Criar uma personagem pensando em sua densidade humana deve ir além de “conhecer” suas emoções. (Uso o verbo entre aspas porque, na verdade, só se pode conhecer o que existe independente de nós, enquanto a personagem é nossa criatura). Sim, devemos “conhecê-las”, mas, mais do que isso, estabelecer o nexo entre elas e alguma coisa mais profunda que habita a personagem. As emoções, assim, são apenas sintomas de uma entidade quase sempre desconhecida pela própria personagem, múltipla, complexa, contraditória, e que chamo de questão essencial. É ela que guia as ações da personagem e faz surgir as emoções que vão para a história. No Hamlet essa questão essencial, dentre outras coisas, é a dúvida entranhada e a desconfiança de seu lugar no mundo, que se expressa no “To be or not to be”, capaz de provocar as diferentes emoções expressas pelo príncipe da Dinamarca: raiva (de Cláudio, de Polônio), amor (por Ofélia), amor-raiva (por Gertrudes), riso e deboche (perante a caveira de Yorick) e assim por diante. O mesmo acontece com Raskolnikóv, cuja questão essencial encontra seu núcleo, fortemente autocentrado, de que tudo lhe é permitido e por ser superior, o que se manifesta em ódio, generosidade, culpa, não-culpa, despiste, afrontamento, etc., fáceis de serem descobertos por quem se lembra de Crime e castigo. Bem: estamos no domínio da filosofia e da psicanálise, e convém ultrapassá-lo logo, para que não se perca o foco, que é a criação da personagem.
4.
À luz do que foi visto, é momento de retomar uma afirmativa do parágrafo 2, em que se disse que a personagem é a entidade “criadora” da história. Para já, uma afirmativa fundamental, que precisará ser explicada: a personagem é responsável por tudo o que acontece na história, inclusive por aqueles fatos que ela não controla ou sequer prevê. Sua simples presença é capaz de justificar a queda de um raio, uma inundação, uma ponte que cai. Até uma epidemia. Forte demais? Um exemplo? Tomemos Morte em Veneza, de Thomas Mann. A personagem central é Gustav von Aschenbach, escritor de Munique, cujos anúncios de sua questão essencial são esboçados nas primeiras páginas, e completados no decorrer da novela, a partir da frase seminal: “Tratava-se do ímpeto de fugir — era preciso confessá-lo a si mesmo! —, da saudade de coisas novas, longínquas, de ânsia de liberdade, exoneração, esquecimento”. O resto sabemos bem: vai para Veneza, envolve-se numa paixão — a seus olhos, pecaminosa — e então é apanhado por uma epidemia. Deixa-se morrer. Essa epidemia não foi provocada por von Aschenbach, claro, mas a construção de sua personalidade “atraiu” essa epidemia para o romance. Ela deveria acontecer, para que ele purgasse sua culpa e acabasse de vez com seus sofrimentos. O mesmo acontece com o acidente de trânsito que vitimou Macabéa. Ela, tal como nos é posta, “só poderia” morrer atropelada. Não operamos com nenhuma magia, e, sim, dentro do literário: em ambos os casos — Mann e Clarice — são mortes “naturais”: será natural a epidemia, será natural o atropelamento, e por uma Mercedes, cujo símbolo é uma estrela. Na mão de ficcionistas amadores, ou incapazes de criar personagens consistentes, esses finais soariam artificiais, e, quando não, ridículos, escritos às pressas apenas para dar um fim ao romance.
5.
Por último, uma palavra sobre a ideia da organização prévia da história — serve dizer “planejamento” — que aparentemente se choca com a ideia da personagem como o motor da ficção. A questão é um pseudoproblema. Explico o porquê. Ao criar a personagem e “dar-lhe liberdade” para agir, ela construirá uma história que, aparentemente, não terá regras, e, portanto, será imprevisível. Como planejar, nesse quadro? Aí é que entra o papel do ficcionista, que será o organizador do enredo, procurando todas as possíveis incongruências e, em especial, verificando se os eventos ocasionais (um acidente, uma epidemia, como vimos) perderam sua condição casual e se inserem na complexidade profunda da personagem, nela encontrando sua justificativa. Esse procedimento dará coesão à história, e com isso voltamos à personagem, a instância que move a ficção. Mas o planejamento, suas virtudes e vícios, será assunto de artigo específico.