Publicar

Os dilemas da escrita vão muito além do ponto final: quando a história “acaba”, o escritor tem pela frente a missão de revelar ao mundo seu íntimo universo
Ilustração: Carolina Vigna
01/03/2022

1.
Não há muito mais o que dizer sobre o publicar [melhor: o não publicar] do que contém o livro de Enrique Vila-Matas, Bartleby e companhia. Ali ele analisa, com certa dose de cruel humor, as diferentes atitudes dos escritores acerca desse passo crucial e apavorante, e dedica-se a estudar casos célebres de autores que, por suas, e às vezes insondáveis razões, não escrevem, ou se escrevem não publicam, assemelhando-se à personagem de Melville que repetia com obsessão: “Preferiria não fazer”, como ficou em traduções sua célebre frase I would prefer not to. Remetendo às reflexões do genial escritor catalão, esta coluna tentará ver o fenômeno a partir da observação dos tormentos — ou delícias, para alguns — que envolvem os momentos finais da escrita de um romance e o momento seguinte, que vem a ser sua publicação. Para alguns é um passo natural; para outros, um salto sobre o abismo. Para que as coisas fiquem mais nítidas, é bom distinguir se falamos em primeiro livro ou se é um livro que se vem a somar a outros tantos já publicados pelo autor.

2.
Antes de tudo: para o autor consciente, nunca uma obra está pronta; ela sempre poderia ser melhor, e essa é uma sensação desagradável, que, no geral, o acompanha até o fim da vida e, contra isso, nada pode ser feito. Jorge Luis Borges já alertava para essa inarredável sensação de perpétua incompletude da obra. Já o autor deslumbrado com seu próprio livro e sem qualquer pensamento crítico acerca dele, bem, esse terá apenas felicidade: seu livro vai revolucionar a literatura do Ocidente — e talvez do Oriente, por que não? — e, acrescentado ao último capítulo um inconsciente “ponto final”, entrega-o à editora. O resultado pode não confirmar sua predição, mas talvez o autor nem se dê conta disso. A urgência em publicar, essa é fácil de entender, pois os originais “queimam” nas mãos. O pior que o escritor pode escutar é: esqueça a pressa, deixe o livro descansar, deixe que as palavras se acostumem umas às outras, releia-o depois de um tempo. A experiência indica que aparecerão, inexoráveis, problemas textuais que podem ser corrigidos a tempo. Um fato é certo: nunca se viu escritor queixar-se de que demorou a publicar; já o contrário, é dor de cabeça garantida.

3.
Cada autor “típico” tem seu método e suas próprias reações instintivas perante seu livro “pronto”. É, possível, contudo, encontrar alguns padrões. Caso se trate de um primeiro livro, o autor passa por diferentes estágios, que podem ser resumidos na sucessão a seguir. Alívio: o autor sente-se liberto de uma tarefa autoimposta ou, se for obra de encomenda, de uma tarefa contratual [nada contra: O Romanceiro da Inconfidência, a obra mais celebrada de Cecília Meirelles, foi uma obra encomendada por Juscelino]. Trata-se de uma percepção de prazer, que ocorre a qualquer pessoa ao liberar-se de um encargo, e, guardadas as diferenças ontológicas, o nível de exaltação corresponde ao do início da escritura do livro. Dúvida: será que este livro diz, de fato, o que eu queria dizer? Meu leitor entenderá isso? A personagem central está convincente? O conflito está claro? Se tudo isso tem resposta positiva, pode ser publicado? Aqui se está a falar não exatamente do final, mas da obra em si; digamos, do romance, já que esta coluna tem tratado mais desse gênero.

4.
As perguntas do parágrafo acima não podem ficar circulando por exclusivo na cabeça do escritor. Elas precisam ser compartilhadas. Mas atenção: precisam ser compartilhadas com pessoas que tenham duas condições: a) devem ser capazes de elaborar um juízo literário, técnico, e possa demonstrar com clareza, esse juízo; b) devem ser sinceras. Infelizmente essa rara pessoa quase nunca vive ao nosso lado. É preciso sair da bolha doméstica ou das amizades próximas para encontrá-la. Assim fez Flaubert ao submeter previamente seus escritos a Louis Bouilhet, assim como Maupassant o fez em relação a Flaubert. Ouvir a opinião dos outros sobre nosso livro não é humildade, mas, sim, inteligência.

5.
Superadas a fases do alívio e da dúvida — ou, pelo menos, apaziguada esta última — vem nova fase: a publicação, objeto da coluna, mas que tardiamente aparece. Publicar é um ato tremendo; é compartilhar algo que pertence a nosso domínio íntimo, controlado, com um público sem rosto, que vai conhecer a nossa alma, pois sabe que as personagens, todas, acabam sendo as múltiplas representações de nós mesmos. É uma invasão de nosso pequeno e misterioso país. Aquilo que levamos anos a escrever acaba por ser lido em dois, três dias, às pressas, e o leitor ainda poderá dizer, como um carnívoro de dentes arreganhados: “Devorei seu livro!”. Trata-se de uma grave desatenção, uma punhalada, uma imensa falta de civilidade… Além disso tudo, o público, na menor vacilação autoral, real ou verdadeira, torna-se inimigo para sempre. Hoje em dia, com a odiosa prática das patrulhas digitais de todos os matizes, uma única frase mal amanhada, num livro de 500 páginas, pode erguer-se em pedra de escândalo, capaz de levar a cancelamentos sem-fim. A esse ponto chegamos. Mas ainda há tempo para recuar.

6.
Se tratamos de um primeiro livro, preciso é vencer as dificuldades naturais externas que todos conhecemos, a peregrinação a editoras, a participação em editais públicos, a autopublicação, a publicação assumindo custos editoriais — enfim, o que se sabe, e sem problemas quanto a essas duas últimas formas, pois o que importa, ao fim de tudo, não é quem pagou a edição, mas, sim, a qualidade da obra. O resto é preocupação inútil: quem se lembra, hoje, ou dá importância ao fato de que a primeira edição do revolucionário O quinze, foi pago pela própria Rachel de Queiroz? Hoje em dia, a prática do crowdfunding é um fato muito bem-vindo no meio editorial.

7.
Para o escritor com carreira consolidada — vamos aceitar que isso ainda existe, em nossos tempos novidadeiros e líquidos, como quer Zygmunt Bauman —, a angústia não é menor, pois o livro lançado deve sempre ser melhor do que o antecedente. Isso, aliás, também vale para o segundo livro. Pior não poderá ser, porque logo os críticos dirão que o autor está perdendo o fôlego, quando não senil, etc. Digamos, de maneira simples: o “dever” de uma escalada de crescente qualidade tem feito estragos em inúmeras carreiras. Não custa lembrar que autores célebres tiveram altos e baixos, e por alguns baixos inexplicáveis, alguns se deprimiram e deixaram de escrever; outros persistiram, recuperando seu nome e a qualidade prestigiosa de sua obra.

8.
Para quem começa — e não somente —, a palavra é, tentando sintetizar: avalie, prévia, lenta e profundamente, a qualidade do livro que deseje publicar; não vá na conversa de amigos fiéis, salvo se forem competentes e inveterados leitores; caso consiga refrear a sofreguidão, envie-o para concursos literários; se as editoras não quiserem publicá-lo, lembre-se: J. K. Rowling teve seu Harry Potter recusado; e não se envergonhe: caso tenha algum dinheiro, considere a autopublicação. Em qualquer desses casos, não custa dizer, você não será o primeiro nem o último. Persista, seja superior, mantenha-se impávido, tal como a literatura tem feito há dois milênios.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho