1.
Desde já: o escritor não pode submeter-se a qualquer limite. O “submeter-se”, aqui, implica uma atitude de rendição a um ditame externo. Quando isso acontece, é porque vive num regime politicamente autoritário. Na ditadura militar brasileira não foram poucos os que se impuseram limites, e a autocensura talvez tenha sido ainda pior do que a censura direta, pois se, na primeira, passa-se a ideia de que ela não existe, na segunda fica evidente. Em todo caso: os limites impostos por terceiros, ainda que de maneira indireta, são sempre e desgraçadamente inomináveis.
2.
Os limites, no contexto desta reflexão, significam as mil especulações que o escritor se coloca e que podem interferir no texto final, e são de dupla natureza: os limites morais e os limites literários. Nem tudo é tão simples, porém. Por vezes, esses limites se confundem, e é bom que seja assim, pois a literatura nutre-se das ambiguidades e das zonas crepusculares. A divisão binária, aqui, valerá apenas para fins de estrutura do pensamento.
3.
Os limites morais são determinados pelo próprio autor, numa atitude estritamente pessoal, exclusiva e inquestionável. Cada qual sabe no que acredita e escolhe onde pode ou quer ir. Se há Henry Miller, Anaïs Nin, Nabokov e Marquês de Sade, há também Graham Greene, Shusaku Endō, Ariano Suassuna e Paul Claudel. Há os escancarados, há os sutis, há os tímidos, há os recatados. A uni-los, uma literatura de qualidade consagrada pelos leitores e críticos. Digamos assim: já pertencem ao cânone. O leitor que faça suas escolhas.
4.
Os limites literários são bem mais complexos, pois implicam o conhecimento da arte da narrativa, e que, nesse aspecto, se resume a uma decisão: o que mostrar ao leitor e o que ocultar dele. Isso são limites. O objetivo é obter a participação ativa do leitor no ato da leitura — e aqui abre-se uma questão sem fim e, talvez, sem começo nem meio. Digamos: é uma questão circular. É circular porque o próprio escritor não sabe bem como trabalhar com ela, guiando-se pela intuição complementada pelo conhecimento, e isso implica a percepção do leitor, que, por sua vez, depende dos elementos que lhe são dados pelo escritor. E o lugar privilegiado para que isso aconteça é o texto. Os próximos parágrafos pretendem trazer algumas considerações sobre o tema.
5.
Para já, o que mostrar/ocultar é uma decisão que decorre das opções autorais. No texto jornalístico, porém, o tudo mostrar é impositivo, pois o leitor deseja a matéria completa e o jornalista tem o dever da verdade — salvo se, por conveniência humana ou moral algumas informações devam ser ocultadas, como o nome de uma pessoa ré de processo que corre em segredo de justiça, ou de uma vítima fatal de acidente, do qual os familiares ainda não foram avisados, ou a identificação de um jovem suicida. Os casos não se limitam a esses, por óbvio, e, aparentemente, a sociedade aceita bem essas sonegações.
6.
O texto literário opera em outro registro, o da sua verdade interna, devendo contas apenas à própria obra, tal como foi concebida. Assim sendo, é dentro desse âmbito que podemos avançar, dizendo que é próprio de certos gêneros a ocultação sistemática de alguns itens do enredo, sendo o romance policial um exemplo completo de como isso ocorre, e o leitor assim o espera. Agatha Christie manobrou com extrema acuidade esse jogo, e não por outra causa tem milhões de admiradores. O mesmo acontece com alguns romances de aventura, em que ocorre uma surpresa a cada página; é preciso ocultar inúmeras informações, para que o sobressalto seja efetivo. Digamos, para resumir: esses gêneros vivem mais do que ocultam do que mostram.
7.
Abstraindo as modalidades acima, é possível dizer que se abre um campo enorme, senão majoritário, constituído pelos bem-vindos romances sem gênero determinado. Aí a história é outra: eles também seduzem o leitor também pelo não-mostrado, mas cuja chave está no subtexto, e sua enunciação fica a cargo de quem o lê. Já não pensamos em mistérios que são revelados ao final: o assassino é o mordomo. Trata-se, aqui, algo que jamais será dito explicitamente e, por isso exige atenta cooperação do leitor; são chamados de romances “difíceis”, porque não “puxam” pelo pensamento lógico, mas por algo bem mais intricado, que vem a ser o conhecimento da natureza humana e sua complexidade. A carga de ocupação do leitor é bem maior e complexa.
8.
O sempre citado conto A missa do galo, de Machado de Assis, é um exemplo de construção de um subtexto que o leitor é chamado a desvendar pelos gestos e falas aleatórias das duas personagens centrais. Quando dizem uma coisa, querem dizer outra. Seus gestos, principalmente da “boa Conceição”, são medidos pelo autor, de modo a, em sua economia, contar uma história de abandono, insuficiência de realização erótica, tristeza e tentativa de sedução predeterminada ao fracasso; no outro lado, a candidez do jovem Nogueira, que não entende nada do que acontece naquela noite. O entendimento, segundo certa interpretação teria ocorrido na maturidade.
9.
A fazer par com o conto machadiano, pode-se pensar em O inocente, de Ian McEwan, no qual assistimos à sedução efetiva da experiente Maria sobre o jovem Leonard, qualificado já no título da novela. Enquanto Maria mantém-se todo o tempo como efetivamente é, com uma biografia recheada de múltiplas experiências amorosas, Leonard centraliza episódios da mais pura ingenuidade, em que ele chega a cometer alta traição à pátria e afundar-se num drama macabro que culmina com ele a carregar duas malas pelas ruas de Berlim, que levam, em seus conteúdos, o cadáver esquartejado de um homem que ele mesmo assassinou — e tudo isso sem nunca perder a inocência.
10.
Aqui aparece o jogo do que mostrar e ocultar. Nos casos acima referidos, os autores preferiram preservar a candidez de suas personagens e, para tanto, escolheram um limite, marcado por revelar apenas aquilo que leva o leitor a concluir que, de fato, tanto Menezes como Leonard mantêm-se inocentes do início ao fim da trama. Para alcançar essa proeza, foi necessário atuar com intenso virtuosismo literário, lutando contra a tentação de explicar melhor para que o leitor melhor entenda. Os limites: nem Leonard nem Meneses poderiam ter dito algo que os revelassem como pessoas ingênuas; e nem seria possível mostrar seus pensamentos sobre o erotismo, exceto se o leitor puder perceber que estão equivocados consigo mesmos. Ambos acabam por convencer como personagens, e com brilho.
11.
O assunto não é fácil, principalmente para iniciantes, que passam maus bocados na luta entre seu natural amadorismo e seu desejo de uma escrita profissional. E a escrita profissional resume-se a isso: conhecer os limites narrativos da história que se quer contar. Uma linha que não pode ser transposta. Esses bravos autores em formação não querem ser explícitos; por outro, não desejam ser obscuros. O melhor conselho é saber previamente o que se quer contar, assim como o souberam Machado e McEwan: ambos queriam contar uma história de personagens caracterizados pela inocência, e que estiveram na iminência de perdê-la. Tanto o autor britânico como o brasileiro sabiam o que desejavam dizer em suas narrativas, e entenderam os limites que elas impunham. O resultado está aí.