O universo do escritor

O romancista deixa-se tomar por um encantamento insuperável por sua ideia, e isso o faz prever que seu livro será obra-prima
Ilustração: Eduardo Souza
01/07/2022

1.
Ao começar um livro — um romance, o gênero que mais frequenta esta coluna — o ficcionista, ao mesmo tempo, acende o fiat lux de um universo invisível que o envolve por completo, o qual é capaz de dar uma razão provisória à sua vida. O ficcionista sabe o que está a escrever, sabe aonde quer chegar, e tudo, nesse universo, de repente, se organiza num sutil jogo de combinações que parece articular-se de maneira espontânea e desde sempre. De modo simples: ainda que tenha planejado sua obra à minúcia, o romancista deixa-se tomar por um encantamento insuperável por sua ideia, e isso o faz prever que esse livro será obra-prima, não apenas a sua, mas a obra-prima da literatura de todos os tempos.

2.
Para esse encantamento narcísico, para esse envolvimento medular, a que não está alheia a vaidade, colaboram as pesquisas destinadas a dar segurança ao que se escreve — a não esquecer que o romance também é uma forma de conhecimento —, e daí entram as tentativas de capítulos, os capítulos dados por prontos e que, na verdade, não estavam, e que implicam nova feitura. Nesse microcosmo planta-se uma semente que, à medida das semanas e meses, às vezes anos, cresce e se amplia em novos ramos de atenção. Aspectos da vida, antes inúteis, agora passam a ter o máximo interesse. O ficcionista torna-se experto em precisas áreas do saber, como filatelia, ornitologia, botânica, mecatrônica industrial, o giro dos planetas em torno do sol ou a simples natureza humana. A mecânica do mundo, vista pelos olhos do autor, surge primeiramente como natural, mas logo se transforma na única possível. Sucedem-se, então, as cadernetas de apontamentos, os papeizinhos soltos pelos bolsos, os inumeráveis arquivos do computador, os lembretes apressados nos smartphones, a traidora memória. O ficcionista julga-se, a partir de certo momento, o executor de um enredo exclusivo que o destino lhe impôs, apenas a ele, e cheio de armadilhas. Uma vírgula esquecida faz naufragar um romance inteiro.

3.
A personagem, em especial, ocupa os esforços mais do que outros aspectos da narração, pois ela é que faz acontecer o romance. A personagem não “vive uma história”; ao contrário, a personagem faz surgir uma história. Criatura do autor, sim, e se aparenta ter vida própria, é porque foi bem inventada. Ela, a personagem, passa a habitar conosco esse universo, conhecemos a ela tal como conhecemos a nós próprios. Sabemos como vão reagir a todas as circunstâncias do enredo. Inumeráveis são os relatos de escritores verazes que acordam no meio da noite às voltas com suas personagens, por vezes “vendo-as” e até interagindo com elas. O mesmo acontece com os espaços e o tempo em que transcorrem os episódios.

4.
Escrever um romance é ir e vir na façanha da história. O livro é relido milhentas vezes, e de tal forma intensa, que seu autor pode ter a impressão de que o conhece de cor, e com isso, mais e mais se torna algo seu. Com a passagem das semanas, já não sabe distinguir o que é criação, o que é verdade, e qualquer tema estranho ao romance é visto como profano e, até, herético. As pessoas podem pensar que o romancista foi tomado por uma forma de branda obsessão; ou fala constantemente de sua obra ou, se calado, está a pensar nela.

5.
Então, um fato catastrófico: no metrô, uma estudante alheia a tudo. Dobrada sobre si mesma, ela lê um livro sobre a mochila. As emoções do escritor entram em alerta. Longe de ficar feliz, pois ninguém lê no metrô em nosso país, ele é acossado pela perturbadora ideia da distância galáctica que existe entre o interesse da estudante por aquele livro e pelo livro que está sendo escrito com tanto carinho, tempo e lágrimas. E a imaginação avança: como farei para que o meu livro desperte interesse superior ao que ela está lendo? Como farei para que ela tenha acesso, e mais, sinta o mesmo deslumbramento perante meu universo de maravilhas? Afinal, meu livro é todo um mundo de imaginação. Como fazer com que ela se interesse pela botânica, pela mecatrônica tais como estão no meu livro, pelas articulações caprichosas do enredo, pela composição laboriosa e impecável das personagens? No meu livro tudo é necessário e suficiente, e resultou de um estudo responsável de todas as circunstâncias que o envolve. Como é que os outros não veem isso? Que artifícios tenho de pôr em ação para que aconteça esse milagre? Trata-se de um fenômeno persecutório com sua ponta de delírio: por que ela não larga esse livro inferior e vem ler verdadeira literatura, essa que ainda habita nosso cérebro?

6.
É o momento em que o ficcionista cai em si: precisa abandonar a campânula que o envolve, vendo-se a sós e desprotegido perante aquela muralha de descaso da leitora que, naquele instante, representa a todos os leitores e, ainda, a Humanidade inteira e toda a história da literatura. Cruamente, ele se estarrece: a única arma de que dispõe para vencer a insensibilidade é o manejo da arte que o faz escritor. Mas logo vêm pulular pensamentos sombrios, como o do poema do Pessoa: Eu tenho ideias e razões,/ Conheço a cor dos argumentos/ E nunca chego aos corações. E se essa ideia se aplicar a si mesmo? Se nunca chegar aos corações. É um pensamento cruel, luxuoso e dramaticamente inútil.

7.
Nessa tormenta pessoal, vale atentar ao que diz Terenciano, Pro captu lectoris habent sua fata libelli, Os livros têm seu destino de acordo com o entendimento do leitor. Reconheçamos: é uma quimera esperar que aquela leitora do metrô venha a sentir o mesmo que o autor sente perante sua própria obra. É preciso ter, não a humildade, mas a inteligência, de prever — e aceitar — o fato de que aquela distância pode deixar de ser galáctica, transformando-se numa distância planetária, bem mais confortável. Mesmo assim, impossível de cruzá-la. Quanto à vaidade, e vaidade pela obra perfeita, bem, esse é um sentimento que não é domínio apenas da literatura, mas de um comportamento que se expande a todos os recantos da alma de quem o possui, e ao qual se agrega uma forte dose de dor.

8.
Assim, aos navegantes das primeiras rotas literárias, pode-se dizer que a melhor ideia é, antes de tudo, buscar ser mestre no seu ofício, adquirindo de modo seguro as ferramentas necessárias para escrever um romance. Nada supera o prazer de sentir-se competente, capaz de conceber e finalizar uma história. Quanto ao universo do escritor, esse, é dele, para seu inesgotável prazer. Ninguém lho rouba. O resto? Bem, o resto, a leitura da estudante do metrô, a admiração de seus contemporâneos, a vaidade, isso poderá vir com o tempo, quando o escritor já não se importará com essas coisas.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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