1.
Fala-se, aqui, da experiência do ficcionista, que é o final do romance. Especialmente quando não foi pensado antes, chega um ponto em que o escritor não pode ignorar que ali à frente aguarda-o o ponto final, o temido “Fim”, tema que foi explorado no cinema e na literatura, mas que atinge alto grau na ótima novela satírica de Michael Krüger, de 1990, Das ende des romans: Eine novelle, que pode ser traduzido literalmente como O final do romance: Uma novela. Nela, a personagem central, um escritor tão egocêntrico como patético, está por finalizar um romance de 800 páginas, que lhe custou 9 anos de estudo e o mesmo número de anos de escrita e que não consegue escrever a frase final, que deveria ser bombástica e definitiva, “a frase” que revolucionaria a literatura. Ele percorre um mundo de editores, livreiros, vacas de olhar melancólico, uma tempestade, duas vizinhas lésbicas e tudo o mais que o afundam em seu desespero. Se a personagem da novela não acaba bem, o leitor é recompensado por uma magistral obra literária — com um final sob reserva.
2.
Agora uma brincadeira em tom de hipérbole, para relaxar possíveis escritores que estão com o mesmo problema do infeliz escritor-personagem de Krüger, mas que não querem o mesmo destino dele: quase nenhum final agrada ao leitor e nunca, aos críticos. Mas essa brincadeira tem um fundo de verdade. Não é raro que alguns leitores, porque acompanham todo o enredo e solidarizam-se com as personagens, acabam por ter em mente os seus próprios finais e sentem-se logrados quando o ficcionista segue outro caminho. Outra circunstância: quando o romance é bom, nós “o economizamos”, retardando a leitura do final. Quando ele acontece, não nos agrada, seja qual for. Tentando falar a sério, e agora na perspectiva de quem escreve um romance. Há dois aspectos que devem ser considerados. Um é de natureza psicológica e outro, de natureza técnico-literária. Às vezes, os dois vêm juntos, para desgraça do ficcionista.
3.
O ficcionista desenvolve com o enredo uma familiaridade possessiva, quase neurótica. As personagens pertencem-lhe. Os espaços foram criados por sua imaginação. Dar um final significa cerrar um ciclo de prazeres, conquistas, fantasias, sonhos, sentimentos de que o ficcionista não quer libertar-se. É todo um clima por ele engendrado e que o embalou por meses, anos. Se der um final, o livro estará formalmente pronto, o que implica desfazer-se dele e dar acesso a outros esse universo de encantamentos. É duro. Acrescentem-se a isso vários pontos de interrogação: e agora? O que vou escrever que seja superior a isso, que me leve ao mesmo patamar de envolvimento? Assim, quanto mais o ficcionista retarda escrever o final, mais retarda as respostas a essas perguntas, e pode desfrutar de sua liberdade.
4.
Depois, há uma questão técnica. Se se tratar de um romance tout court, isto é, com um tema, vários conflitos, várias tramas paralelas, inúmeras personagens, há o risco de haver vários finais em sucessão, o que é deveras desagradável para ler e para escrever. É grande a possibilidade de resultar em catástrofe. As telenovelas resolveram isso: terminam tudo num casamento, o que, convenhamos, é um achincalhe ao espectador. Se se tratar de uma novela, e, portanto, com um único conflito, uma trama, poucas personagens, o final atemoriza porque aparentemente ele deve ser uma summa de tudo o que aconteceu na história, numa resposta — ou uma pergunta — única ao que veio relatado antes. O ficcionista pensa que o leitor exige isso. A possibilidade de erro é enorme. E, por favor, que não se caia na armadilha do famigerado “final em aberto”, que irrita o leitor e transmite a ideia de incompetência do ficcionista. Dizendo de outra forma: num texto profissional, poderá parecer “em aberto”, mas está longe de sê-lo, pois o ficcionista terá dado ao leitor os elementos para chegar por ele mesmo, e exatamente, onde o ficcionista deseja que ele chegue.
5.
Ficcionistas iniciantes não devem, entretanto, julgarem-se perdidos. Há sempre algumas alternativas para resolver esse quadro. Quanto ao tratado no parágrafo 3, a questão não é literária, e a marca possessiva e a ansiedade, de certeza, se estendem a outras situações da vida. Por isso, podem ser encaminhadas [e resolvidas] noutro plano de interrogações, digamos, psicanalítico.5
6.
Pensando em providências apaziguadoras, aqui vale invocar algo que esta coluna não cessa de dizer: pensar previamente o romance é a melhor medida para amenizar o pânico do final, porque este final já estará antevisto — ou esboçado — desde o começo de sua escrita. Deixá-lo ao acaso, ou à “inspiração” do momento, é o caminho mais curto para o insucesso. O final antevisto será um bom norte para a organização estrutural do romance. O iniciante, com isso, saberá o que dizer quando o momento chegar, reservando-se o prazer do como isso será dito.
7.
Outra forma de perder o terror é, antes do capítulo final, fazer um breve retrospecto, no sentido de verificar a integridade do romance. Deve ser constatado, dentre outras coisas, se a personagem central convence como ser humano; se todo o enredo depende da personagem central, desencadeando-o e sustentando-o; se o conflito — isto é, o que o romance discute — está claro; se a relação de causa e efeito entre os diferentes episódios está nítida; se os episódios já escritos são necessários — é o momento de cortar, cortar — e se a tensão vem crescendo desde o início. Esse é o momento de desacelerar a sofreguidão de concluir, exceto se o ficcionista não se importar de reescrever tantas vezes o final até que seja vencido pelo cansaço, pelo tédio ou pelo desespero, como o escritor-personagem do livro de Krüger.
8.
Um conselho que quase sempre funciona é: quando o romance terminar, pare de escrevê-lo. Acabou. Nada mais deve ser dito. Muitos iniciantes acham que o leitor não entendeu o final, que precisa ser convencido do final. Não. O leitor entende muito mais do que os ficcionistas pensam. Não é preciso espichar o final. E, em especial, jamais concluir com uma reflexão, um pensamento. Romances de qualidade terminam numa ação. A reflexão fica para o leitor.
9.
Para encerrar, um comentário que pode suavizar a questão: leitores, em geral — há exceções — não são muito preocupados com os finais, exceto se for uma narrativa policial. Normalmente nos lembramos do meio do romance: Mme. Bovary envolvida com suas dívidas e seus amantes patifes; Raskolnikóv atormentado por sua culpa; Sherman McCoy tentando esquivar-se do clamor público contra ele; Pecola Breedlove captando a solidariedade do leitor em sua busca por algo diverso de si própria; Étienne Lantier exercendo um idealismo que beira a ingenuidade; o Marechal Kutuzov defendendo a Rússia da investida napoleônica, etc. Mas se perguntarmos como terminam os romances em que essas personagens aparecem, poucos irão lembrar-se. Não precisamos ir tão longe: indague-se com sinceridade como terminam Vidas secas ou Viva o povo brasileiro; entretanto, porque assim a arte exige, e porque os ficcionistas conscientes querem fazê-lo bem, é preciso ter cuidado com o fim do romance — ainda que muitos leitores nem sempre se apercebam disso.