1.
Escrever um romance é lutar dia e noite contra o bocejo do leitor. E, nessa luta, tratar com eficiência o tempo da narrativa pode ser uma boa ideia. Se nos atrapalharmos num pormenor, tudo desanda. Muitos romances começam bem, o leitor sabe em que momento aquelas coisas estão a acontecer, sente-se confortável por não perder o pulso de sua leitura, mas, de repente, é a catástrofe: já não sabe se está hoje ou ontem, ou ainda não chegou lá. Começa a saltar parágrafos para encontrar algum calendário, um relógio de smartphone, uma estação do ano, uma ampulheta, ou, em último caso, um sempre atrasado relógio digital de rua. Não enxergando nenhum desses auxílios, vem a impaciência, que logo transita para o bocejo. O resto é conhecido.
2.
Ficcionistas são pessoas privilegiadas. Têm poderes que são dados somente às divindades ou encontráveis apenas nas abstratas fórmulas científicas de nossa época, como a elasticidade do tempo, a qual — descoberta nem tão nova — vem ligada à rapidez do corpo celeste. Não somos deuses e, penso, pouquíssimos serão astrofísicos. Mesmo assim, se os astrofísicos “nada mais” fazem do que constatar e calcular o que já existe, o ficcionista inventa. A faculdade que lhe é dada permite que faça o tempo voltar atrás, ir adiante, parar num eterno presente, acelerar, retardar, estender-se, contrair-se. Em dez linhas podemos comprimir um século, e é-nos possível narrar a instantânea queda de uma cadeira em 20 páginas, como faz Saramago. Não há outra arte que realize com tanta naturalidade essas operações.
3.
Releva, aqui, falar nos vários tempos com que opera o ficcionista: em primeiro lugar, há o conhecido tempo que dura a ação, por exemplo, o tempo que dura uma cena: três horas, como nos intermináveis jantares de Eça de Queirós. Em segundo lugar, há o tempo despendido para escrever essa cena. Esse jantar de três horas pode ter ocupado o escritor por cinco horas. Então: por um processo psicológico inexplicável, ele terá a impressão que sua cena dura cinco horas, quando, na verdade e como vimos, dura apenas três. Ou o ficcionista pode “gastar” uma semana para narrar essa cena — com interrupções, é claro. É muito fácil perder-se entre o tempo da narrativa e o tempo pessoal do escritor, pois somos seres do tempo, ao contrário dos animais, como o gato que Johann Dallmann acaricia no célebre conto de Borges. E como seres do tempo, somos tocados por ele, percebemos nosso corpo se transformar, o humor ganhar novas formas, sentimos cólicas e insônias, alguém morre — enfim, não passamos impunes por ele. Enquanto isso, seguimos escrevendo.
4.
Essa branda esquizofrenia explica equívocos que podem ser encontrados inclusivamente em grandes ficcionistas: personagens que, caminhando, conversam, e, essa conversa de duas ou três frases, que ocuparia não mais que cinco minutos, ocorre durante uma caminhada ao longo da avenida da Liberdade — tanto a de São Paulo como a de Lisboa, ambas com o mesmo comprimento. Embora cause desconforto ao leitor, trata-se apenas de um desculpável “cochilo de Homero”; o problema é quando esse tipo de confusão compromete a compreensibilidade da história. Tal ocorre quanto se trata de um longo tempo de escrita, dois, três anos. São precisas muitas revisões para reduzir o perigo das pavorosas assimetrias cronológicas do romance.
5.
Mas há algo que ajuda a conspirar para o agravamento do quadro: é o tempo da leitura, e isso depende de quem lê, da sua técnica, da sofreguidão e do maior ou menor interesse que o romance oferece. Esse é perfeitamente incontrolável, exceto se admitamos, como Poe em seu Philosophy of composition, que o ideal é que o leitor leia segmentos de uma só sentada, e o recurso do escritor é oferecer-lhe esse segmento ideal. Claro, é mais uma das belas fantasias do grande escritor romântico, mas não ficamos indiferentes ao imperativo de pensar nisso enquanto escrevemos — não custa exercitar a generosidade, pensando em boas e regulares aberturas de parágrafo e, sendo possível, de capítulos. Não é o que desejamos, como leitores?
6.
O pior de tudo é que estamos a tratar de um elemento vago, do qual pouco sabemos. Como diz Agostinho de Hipona, na célebre passagem de Confessiones: “Quid est tempus? Si nemo me queret, scio; si aliqui explicare velim, nescio”, isto é: “O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei o que é; se me pedem para explicá-lo, não sei”. Essa indefinição, no entanto, pode vir a favor de quem escreve, pois permite acesso ao que os teóricos chamam, não sem engasgos semânticos, de “tempo psicológico”. Talvez seja melhor denominá-lo “tempo interior”, mais conotativo e, essencialmente, mais plástico, menos científico e próprio à ficção. Assim, ganho acessório, ganha-se a inteligibilidade desejada por Agostinho. Esse tempo interior, que nada mais é do que a percepção pessoal por parte da personagem, é que permite suas transformações — coisa que o leitor sempre deseja. Se a personagem se transforma, isso ocorre no tempo, mas não no tempo do relógio, mas no da personagem, o que amplia ainda mais o poder — melhor, a liberdade — de que se falou no parágrafo 2.
7.
Se tudo é assim tão complexo e o risco, tão concreto, o ficcionista deve equipar-se com alguns instrumentos. Para o tempo exterior, basta uma régua. Com ela, se traça uma linha; nessa linha vai a cronologia. Se o romance dura uma semana, a divisão será em dias; se um mês, semanas; se décadas, por ano. Ali são dispostos os episódios, bem como a idade das personagens. É surpreendente como algo tão primário não é lembrado por quem escreve ficção. Já basta ter de lidar com o verdadeiro tempo — o interior, da personagem — para dar-se ao luxo de perder-se no tempo do relógio e dos calendários.
Feitas as contas, o tempo interior é o que verdadeiramente importa, pois, sentido pela personagem, terá a função de potencializar o conflito. Na atual pandemia e isolamento social, o tempo é registrado pelas pessoas ora como rápido, ora como lento; outras há, como uma aluna universitária, que declarou perder-se quanto ao dia do mês ou da semana.
8.
A melhor solução para evitar as armadilhas do tempo ficcional é ter bem construída a interioridade profunda da personagem. Essa interioridade é que vai balizar o modo como ela experimentará a passagem do tempo. Há os clichês: a criança terá a tendência em sentir as semanas como longos meses; os meses, como anos. Já com o velho, ocorrerá o oposto; para ele, tempus fugit, o tempo foge. São predeterminações pouco criativas, a serem substituídas pela atribuição de qualidades únicas às personagens. Tal providência levará o leitor a aceitar, dentre outras coisas, que elas podem viver tempos descompassados. Isso pode ser fonte de fricção e instituição de conflito. Aliás, a maioria das histórias decorrem disso. A solitária Emma Bovary amofinava-se com os intermináveis dias da aldeia; para o pobre Charles, aqueles dias eram de apenas 24 horas. A consequência foi a catástrofe. O fato é que o tempo condiciona nossa vida, como condiciona o andamento das ficções, as quais são nossa forma de esquecer a morte. Fosse eterna nossa vida, é provável que não escrevêssemos romances.