O sonho e o romance

No degrau seguinte ao sonho, à ideia ainda na nuvem, vem a concreta escrita do romance — e entre esses dois momentos, a estrada não é fácil nem curta
Ilustração: Raquel Matsushita
01/11/2021

1.
Na cabeça de muitos escritores, o novo romance é um sonho. Todas as possibilidades estão postas, o mundo é nosso, e esse é o melhor momento do processo. É quando as ideias germinam numa nuvem de possibilidades. Esse romance não apenas será o melhor do escritor, mas o melhor romance da literatura de sua cidade, do país e das literaturas do Ocidente e Oriente. Esse romance conquistará o Nobel. Quem acompanha por décadas as trajetórias de jovens autores, jamais terá visto algum desses dizer, cabeça baixa, que iria começar a escrever um romance medíocre e, muito menos, ruim.

2.
Esse quadro, meio cômico, meio sério, significa um fenômeno que tem dois lados. Por um, pode significar o desejo da fama. Essa doença infantil dos iniciantes — sorry, Lênin —, faz grandes estragos e já devastou carreiras em seus inícios, o que é uma pena. Pensassem em êxito, isto é, o sentimento da realização de um bom livro, sofreriam menos, ou, no mínimo, o sofrimento estaria circunscrito a uma instância remediável. Por outro lado, e aqui pensamos em escritores com alguma trajetória, o fenômeno pode ser entendido como um anseio de crescente competência, quer-se dizer: cada romance deve ser melhor do que o outro. Nada mais deprimente quando o leitor elogia um romance e diz, na sequência, que “o anterior era melhor”, ou ainda — supremo insulto! — que “o primeiro é o melhor de todos”: eis aí o desespero do autor por uma vida jogada ao lixo.

3.
Qualquer dos casos do parágrafo anterior é assunto extraliterário, e deve ser considerado em outros âmbitos, como o da psicologia ou da psicanálise: abre-se, portanto, o largo caminho para a exacerbação das neuroses e suas consequências, como o alcoolismo de Scott Fitzgerald ou o suicídio de Hemingway — sendo que, quanto a este último, nem o Nobel foi alívio. O escritor é um ser humano como qualquer outro; a diferença é que essa humanidade é-lhe exigida mais do que às outras pessoas.

4.
Retornando ao estritamente literário, se isso é possível, temos de pensar no degrau seguinte ao sonho, que vem a ser a concreta escrita do romance. Entre esses dois momentos, a estrada não é fácil nem curta, pois leva a uma série de operações mentais e experiências de natureza emocional. As operações mentais implicam algo muito além do simples “como vou começar?”, mas nos remetem à previsão do que vai acontecer no romance; é preciso ter uma mínima ideia do que queremos escrever, mas quanto mais concreta se torna essa ideia, mais garantimos seu êxito. Essa previsão é mais acentuada quando se trata da personagem. Ela não pode ser improvisada, para não se tornar inconsistente — e eis aí mais um limite que nos impomos a bem da verossimilhança, não apenas da personagem, mas da própria história. Quanto ao emocional, logo será visto.

5.
E quanto ao tempo: quando se passa a história? É na época contemporânea? É num tempo passado? Quanto dura a história? Uma semana, um mês, dez anos? E quanto ao espaço, onde ocorrerá a trama? O sonho se vai estrangulando cada vez mais.

6.
Outra dúvida: a focalização: primeira ou terceira pessoa? Se primeira, é a própria personagem central quem fala, como Paulo Honório, de São Bernardo? É uma personagem coadjuvante, como Adso de Melk, em O nome da rosa? Ou é uma pessoa muito próxima do autor, como nos casos da combalida autoficção? E se for em terceira pessoa, será uma personagem vista externamente, ou a ação passará na sua interioridade?

7.
Qual o gênero da história? Intimista, histórico, social, alegórico? Qual o tom da história? De humor, cínico, desconfiado?

8.
A cada decisão o escritor vai acordando um pouco do sonho, mas cada vez mais se aproxima do objeto concreto, que é seu livro, enfim. Não é um bom sentimento; em alguns casos, leva à paralisia criativa: melhor, quem sabe, ficar apenas no sonho, e a quem nunca terá acesso? Por essas e outras razões há escritores que não escrevem, como descrito no curioso e divertido livro do catalão Vila-Matas, Bartleby e companhia. Não querem nem começar, pois terão de abrir mão da delícia de entregar-se às mil possibilidades de seu romance ainda em forma de nuvem.

9.
Há os que seguem adiante. Já sabem que o prazer final não é garantido, e é possível que seu romance não venha a ser aquilo que foi previsto nos momentos de euforia. Talvez seja um romance apenas bom, que não vai desonrar a carreira nem fazer feio comparado aos livros alheios. É o que se pode chamar de choque de realidade. Isso pode levar ao abandono desse texto, deixando para o próximo a realização do sonho. Aqui é possível intentar uma analogia com o que diz Contardo Calligaris acerca do amor:

Talvez a gente se apaixone e se separe sobretudo conforme o ritmo do antigo e inesgotável conflito interno entre nossas aspirações de navegador solitário e nossa nostalgia de uma fusão na qual, enfim, poderíamos descansar de vez.

10.
Há os que terminam o romance, e não sendo um escritor amador — para estes tudo é festa —, terá muitas dúvidas em dá-lo por pronto, pois sempre faltará alguma coisa a ser escrita, a ser melhorada, e quanto mais se mexe nele, mais o desconforto aumenta. Assim, antes de enviar à editora, postergações, até que, por fim, fecha os olhos e segue para a fase semifinal que é o “send”.

11.
Agora sim, o final de tudo. O sonho tornou-se uma série de folhas de papel costuradas e coladas, com uma capa que o escritor não gosta, e uma contracapa com um banal código de barras. Na livraria, ele ainda traz um deselegante e indigno valor em reais. O escritor pode pensar, desolado, em como se aviltou todo seu grandioso projeto, como tudo ficou mesquinho e quotidiano, como o sonho se apequenou no seu propósito de transformador de todas as literaturas.

12.
Para quem está no início, o melhor é não cair nessa teia de equívocos que só pode levar a funestas considerações sobre a própria existência da vida. Antes de tudo, é preciso julgar-se competente para escrever aquele romance; depois, confiar no seu instinto e seu conhecimento, deixando de lado as especulações delirantes sobre o futuro daquele livro sequer escrito. Ele será o que for, com perdão pelo pensamento circular. Mesmo as escolhas prévias, referidas acima, longe de limitarem um sonho, podem se transformar em belos e empolgantes exercícios de técnica literária. O sonho? Bom, ele pode ser destinado a fins outros, àqueles que nos podem deixar verdadeiramente felizes e solidários.

Nota: e quanto tudo isso envolve o leitor, eis o tema da próxima coluna.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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