1.
Dentre os assuntos mais frequentados em laboratórios de texto, o dominante é enunciado no título da coluna deste mês. Mas não se trata de tema discutido apenas nesse foro de pares, mas também, e com muita ênfase, nas discussões ocorridas na vida literária e, de forma sub-reptícia, nos pensamentos inconfessáveis de quem escreve. Bem simples: este tema, não é possível contorná-lo. Na anterior coluna, viu-se o escritor perante sua própria obra; hoje, é o escritor frente a seu leitor.
2.
Para quem escreve, quem é essa entidade difusa, sem rosto que, quanto mais pensada, mais imprecisa se torna, e temível? E o pior é que a vemos citada a todo momento: “o que pensará o leitor disso?”, “será que o leitor vai entender o que escrevi?”, “em atenção ao leitor, vou escrever isso de outro modo”, ou coisas cruéis: “acho que neste ponto o leitor vai abandonar o meu livro”, ou esperançosas: “no futuro, o leitor entenderá meu livro”, e por aí vai, num rosário de sofrimentos, na maior parte, intransitivos — e inúteis, conforme será visto no parágrafo 12.
3.
Aqui é possível pensar na frase de Terenciano, Pro captu lectoris habent sua fata libelli, que, numa arriscada tradução livre, mas verdadeira na essência, significa: “cada livro tem seu destino de acordo com o leitor que o lê”, e com isso ele quis dizer, avant la lettre, que um mesmo livro pode ser lido e entendido de maneira diversa, dependendo da carga de sensibilidade e informações de quem o lê, e essa é uma experiência quotidiana do universo das letras. Assim, melhor começar dizendo que é impossível falar genericamente em “o leitor”, ou em “os leitores”, sob pena de um grave equívoco ontológico.
4.
Sob o ponto de vista autoral, essa conceituação plurívoca se torna aguda, pois dela dependerá maior ou menor gasto de energias por parte de quem escreve. Abstraímos, desde logo, a figura fantasmática do “leitor ideal”, que faz contraponto com certo “leitor real”, formando uma díade perversa, de autonomia estéril e circular. É possível ver, entretanto, classificações mais férteis, e que circulam no ambiente do ensino da Escrita Criativa. Seguem abaixo.
5.
Leitor habitual. É constituído pela grande massa dos leitores — isso existe, especialmente em nosso país? — que não deixa de ser mais uma abstração, mas mais perceptível, pois envolve o grupo de pessoas que possuem alguma formação escolar, lê por prazer e, quando pode, compra livros. Jamais lhes passou pela cabeça escrever um romance. Em geral, não releem, porque logo buscam novidades. Suas preferências são ecléticas, e não se preocupam tanto com a qualidade literária, pelo menos nos estágios iniciais de sua vida leitora.
6.
O leitor letrado. Este vai à busca daquilo que considera “boa literatura”, busca resenhas, como as do Rascunho, comentários de blogs e mesmo no Instagram. Lê por prazer, claro, mas levando em conta o que pode aprender, então é alguém que relê as obras que considera bem realizadas. É frequentador de teatro, cinema, concertos e mistura sem qualquer problema o pop com o culto. Aumentar sua cultura faz parte dessa gama de interesses, e o livro é o melhor veículo para isso. Faz parte de seu estilo possuir bibliotecas em casa.
7.
O leitor acadêmico. Todorov diz que há escritores que escrevem apenas para serem lidos nas universidades. São os experimentais, que praticam intensas intertextualidades e citações, e quase sempre suas obras são objeto de artigos e teses, em que não sabemos se o autor dessas peças universitárias gostou ou não gostou do livro sobre o qual se debruçou.
8.
Neste parágrafo poderíamos incluir outras tantas categorias quanto se possa imaginar, como os exigentes leitores infantis e juvenis, para quem se escreve com essa específica intenção e mil cuidados.
9.
Perante esse quadro infindável, o escritor varia o destinatário de seus livros, o que causa frustrações capazes de comprometer o rendimento e até a qualidade de sua escrita. Quem escreve está sobre o fio da navalha: se quer ser lido “por todos”, terá de fazer inúmeras concessões, o que acaba gerando amargor e baixa autoestima. Se quiser ser lido pelo leitor letrado, perderá o leitor natural. Se quiser ser lido na universidade, deve assumir que terá um número mínimo de leitores e vendas, zero.
10.
E agora, como raridade, há postura dos escritores que escrevem para si mesmos, não importando se os leitores o entenderão, ou, sequer, se terão leitores; publicam apenas para registrar que o livro existe. É atitude plenamente legítima, e são conhecidos os casos em que isso sucedeu na história literária. Tais obras, ao fim e ao cabo, significaram um arejamento e uma busca de novos meios expressivos, e com isso passaram ao cânone, nem que tenha sido cem anos depois da morte de seus autores.
11.
O assunto será mais bem encaminhado se o escritor tirar da cabeça o desejo de ser lido por “todos”. Isso não existe, justo pela impossibilidade de esse “todos” significar 100% dos leitores — e aí, mais uma vez, voltaremos às classificações que não ajudam em nada.
12.
A quem está iniciando, o melhor conselho, o mais confortável para quem o dá e quem o recebe, é este: evite a amargura, evite o sofrimento, escreva para um leitor que é você mesmo, isto é: escreva para uma pessoa que tenha o seu mesmo grau de cultura, que tenha lido os mesmos livros que você leu, seu universo de interesses, suas experiências sentimentais, seus gostos quotidianos. É arriscado colher em outras searas, pelo menos, não agora. Acrescente a isso a qualidade estética, que você está a adquirir com seu esforço e há muito tempo. Esse caminho nunca levará ao erro, porque a obra satisfará à gama de leitores com esse perfil, mas, se tiver valor literário, acabará atraindo o interesse de outros tantos, completamente imprevisíveis, inclusive os que não são como você. Assim, você preservará sua identidade de autor e de ser humano. Se serão seis, 600 ou 6.000 os exemplares vendidos, deixe essa enfadonha contabilidade para seu editor. Concentre-se em escrever cada vez melhor para esse leitor-você-mesmo. O resto virá por acréscimo e prazer.