O conflito de todos nós [2]

O melhor artifício autoral para que o conflito transpareça é deixar para o leitor a interpretação das diferentes situações críticas
Ilustração: Fabiano Vianna
02/01/2021

1.
Posto que seja verdade que os conflitos, no romance, são transcendentes, de caráter moral ou metafísico, e que um mesmo conflito pode estar presente em inúmeras obras literárias, e, ainda, que na mesma obra podem estar presentes vários conflitos simultâneos, será preciso saber de que maneira se revelam nas situações críticas [ou complicações, atribulações], pelas quais passa a personagem durante o enredo. Dizendo de maneira mais útil, qual é o artifício autoral recomendado para que as situações críticas possam trazer à luz os conflitos?

2.
Tenha-se em conta de que o leitor terá dois níveis de interesse: um, que pode ser denominado de primário, que busca saber o deslinde das situações, às vezes chamadas inadequadamente de “situações conflitivas” do quotidiano da personagem: conseguirá William de Baskerville, de O nome da rosa, descobrir quem é o assassino dos monges?; o outro nível de interesse, digamos, secundário, discutirá a oposição entre a possibilidade e a impossibilidade de que a palavra seja suficiente para a transitividade do contato humano — o sintagma nome da rosa, como sabemos, era uma proposta medieval para mostrar o poder infinito da palavra, para o bem e para o mal, acrescentemos; o mesmo conflito que revela o famoso verso de Gertrude Stein: Rose is a rose is a rose is a rose. Então: o conflito sempre será uma dualidade de elementos opostos. O conflito, enfim, é a resposta à pergunta que nos fazemos depois da leitura: o que queria dizer este livro?

3.
Num romance, as situações críticas podem ser graves: o medo de Emma Bovary que sua ruína financeira venha à tona; ou leves: conseguirá Charles Bovary realizar com êxito uma cirurgia ortopédica no jovem Hippolyte? Mas não nos confundamos: leves ou graves, as situações críticas sempre conduzirão ao conflito, através de uma sucessão de “por quês?”, os mesmos que as crianças fazem quando os adultos acabam de dar uma resposta, até que os adultos batem em retirada ou, como faziam os antigos, mandam que as crianças calem a boca. E aqui o famoso Emplasto Brás Cubas, das Memórias póstumas, pode nos ajudar a pensar. Brás, ao final de sua vida, está obcecado pelo emplasto, o qual irá curar todos os males da Humanidade. Por quê? Porque Brás quer ajudar a todos os sofredores. Por quê? Porque deseja dar um sentido à sua vida. Por que sua vida não tem sentido? Porque ele sempre relativiza o que lhe acontece. Por quê? Porque sua vida é feita de uma irresolvida oposição entre o que deve fazer e o que efetivamente consegue fazer. Pronto: chegamos ao mesmo conflito do drama Hamlet, do romance Ilusões perdidas e de uma infinidade de narrativas.

4.
Reiterando, sob outra perspectiva, algo já aludido na coluna do mês anterior: ficcionistas amadores, por se preocuparem apenas com as situações críticas de sua história, perdem a transcendência que a mesma história poderia ter se discutisse uma questão humana permanente, dotada de universalidade. O que resulta disso pode ser um desastre: a partir de certo momento o leitor experiente e sensível se impacienta, “mas o que estou lendo, afinal?”, ou “essa história não me alcança”. Ele não percebe, na sucessão das situações críticas, a existência de algo que o intrigue para além das simples complicações que daí surgem. Então vem uma pergunta muito escutada: como é, então, que a leitura de um volumoso best-seller [no mau sentido que às vezes atribuem à palavra] me apaixona da primeira à última linha? Por que não consigo parar, virando com nervosismo crescente as milhentas páginas? Isso não é bom? Sim, claro que é. Momentos agradáveis são sempre bem-vindos. Mas há uma pergunta que fica no ar: você leria esse livro de novo? Ante a resposta “não, claro, já li” podemos dizer que esse livro já não tem mais graça, e aqui vale a analogia com a frase de Galeno, Triste est omne animal post coitum. Se esse best-seller, entretanto, fosse dotado de um poderoso conflito, passaria à história da literatura, e nós o leríamos infinitas vezes, assim como fazemos com Guerra e paz, repleto de situações críticas — mas que discutem o conflito que está no título. Aliás, com O vermelho e o negro acontece o mesmo, pois revela, segundo alguns teóricos, a oposição entre a Imanência [a vida militar, rubra das guerras] x Transcendência [vida religiosa, o negro da sotaina].

5.
Não são precisas cenas solenes, como em Macbeth ou em Antígona, para que o conflito desabe em toda sua força aniquiladora. Na literatura nossa contemporânea, ao contrário, ele se materializa nas pequenas ações, imperceptíveis ao olhar distraído, mas fatais para quem as vive. Um exemplo notável está em O náufrago [Der Untergeher, o perdedor], essa arrasadora novela de Thomas Bernhard. Temos uma focalização interior em primeira pessoa, que é de um homem que conta a história de seu amigo Wertheimer. Ambos estudavam piano no Mozarteum de Salzburg, e eram alunos de Vladimir Horowitz e, além de colegas, amigos. Participava da mesma classe o jovem Glenn Gould, personagem real, destinado a ser o maior intérprete de Bach do século 20. Um dia em que os amigos chegavam para a aula, Wertheimer inesperadamente estacou na porta, hirto. Glenn Gould tocava. Só depois de Glenn concluir a peça musical é que Wertheimer conseguiu entrar, sentar-se, mas se manteve em silencioso pânico, os olhos fechados. A narração segue:

Dizendo-o de forma patética, foi o fim, o fim da carreira de Wertheimer como virtuose. Estudamos por uma década inteira um instrumento que escolhemos e então, depois dessa década mais ou menos deprimente e de muito empenho, ouvimos dois ou três compassos de um gênio e estamos acabados.

De fato: o insuportável conflito, que pode ser expresso na colisão entre viver por uma causa e o fracasso dessa causa — presente também em O coração das trevas e A morte em Veneza acaba por emergir de um gesto que apenas o amigo notou e que passou completamente despercebido por Horowitz e mais ainda, por Glenn Gould. Não houve uma palavra sequer de Wertheimer, apenas um sentar-se de olhos cerrados, imerso em uma dor que o conduziria ao suicídio.

6.
Disso que foi dito, depreende-se que o melhor artifício autoral para que o conflito transpareça é deixar para o leitor a interpretação das diferentes situações críticas, mas tendo o cuidado para criar esses momentos com a intenção de que signifiquem mais do que aparentam. Não será melhor ideia deixar os atos das personagens se diluírem em banalidades assimétricas e inócuas. Elas, a bem da construção de um bom romance, devem adquirir sentido tendo em conta o conflito que expressam. Mas para isso, é claro, o ficcionista deve saber que livro está escrevendo.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho