Entre aspas e travessões

Nos diálogos de uma narrativa, não há quaisquer regras, exceto duas: clareza e fidelidade; o leitor não pode se confundir
Ilustração: Eduardo Souza
01/03/2021

1.
Um dos pseudoproblemas que afligem o ficcionista iniciante é a apresentação gráfica do diálogo. Por vezes essa preocupação é tão grande que chega a paralisar a escrita. “Eu uso aspas, uso travessões, não uso nada?” “Como é isso do discurso direto ou indireto? Quando uso um, quando o outro? Para que servem?” Nisso gastam-se horas preciosas que podem ser dedicadas à fluência do texto. Num caso mais grave, o ficcionista havia escrito um romance todo utilizando travessões, e antes de enviar à editora decidiu substituir os travessões por aspas, teve de fazer manualmente e foi uma catástrofe de formatação. Precisou voltar atrás.

2.
Para já, não há quaisquer regras, exceto duas: clareza e fidelidade. A clareza indica que o leitor não pode se confundir, e a confusão mais comum é pensar que é fala o que é narrativa — e vice-versa. Fidelidade: escolhida a forma que vou usar no diálogo, preciso ser fiel a ela até o final do texto. Se uso travessão, uso-o do início ao fim; se uso aspas, uso-as do início ao fim. Se não uso nada, não usarei nada do início ao fim. Essas regrinhas simples estabelecem uma convenção tácita durante a leitura e garantem o princípio da clareza e, ainda e principalmente, visam tratar o leitor com generosidade.

3.
Quando se afirma que não há regras, é porque, desde que a literatura passou a representar a fala das personagens, ocorreu uma espécie de vale-tudo. Os antigos códices da Idade Média, preferiam o discurso indireto: “E então o cavaleiro disse que…” Com o “disse que…” resolviam tudo. A fala direta da personagem não era transcrita tal como fora enunciada. Quando começaram a fazer isso, os autores emendaram a fala na narrativa e a narrativa na fala, o que não ficou totalmente isento de alguma confusão: “E então o cavaleiro ergueu-se e disse acho que há entre nós um traidor e sentando-se disse quero que se acuse”. Alguns cronistas passaram a escrever em letra maiúscula o início das falas, o que melhorava um pouco a compreensibilidade: “E então o cavaleiro ergueu-se e disse Acho que há entre nós um traidor e sentando-se disse Quero que se acuse”. José Saramago utilizou esse recurso. Foi um longo processo. No século 18 ainda imperava certa anarquia. Lemos em Voltaire uma passagem como esta: “Você não ama ternamente? … — Oh sim, ele respondeu, eu amo ternamente Mlle Conegunda. — Não, disse um dos senhores, nós te perguntamos se você não ama ternamente o rei dos búlgaros. — Jamais, disse ele, porque eu nunca o vi. — Como! É o mais encantador dos reis, e é preciso beber à sua saúde. — Oh! De bom grado, senhores”; e ele bebeu. Voltaire, o eterno irreverente, usou a fórmula que lhe ocorria na hora da escrita. É bem verdade que, em certos momentos, o editor moderno precisa “arrumar” a parte gráfica dos textos do grande iluminista. Não se sabe o que veio primeiro, mas nas décadas iniciais do século 19 [em Balzac, por exemplo] já estavam consolidadas as duas formas dominantes de apresentar o discurso direto: as aspas [preferidas no mundo anglo-saxão, notadamente nas literaturas alemã, inglesa e norte-americana] e travessão [mundo latino, incluindo-se as literaturas francesa, espanhola portuguesa e brasileira]. As razões dessas idiossincrasias, provavelmente, decorrem das variedades tipológicas disponíveis nas mesas dos mestres gráficos, gerando-se ambas tradições — que, entretanto, não são excludentes entre si.

4.
Todos sabem que a fala direta, que reproduz o pensamento tal como a personagem o disse, é chamada de “discurso direto”, e quando a fala é referida na narrativa, é “discurso indireto” — designações problemáticas, mas não cabe aqui esta discussão. A questão é quando utilizar uma e outra. Simples: o mais eficiente é utilizar o discurso direto quando a personagem diz algo importante, que se refira ao conflito. “Tenho nojo de você — Maria disse. — Há 35 anos tenho nojo de você”. Ficaria estranho e pouco convincente com o discurso indireto: “Maria disse que tinha nojo de João, e que havia 35 anos que tinha nojo dele”.

5.
(A observar que, no exemplo acima, foi empregado o verbo “dizer”, que, ali, não teve outro papel senão deixar mais brutais os 35 anos de nojo de Maria, elevando o problema do casal a uma altíssima voltagem. Outra nota: O verbo foi o “dizer”. Esse verbo pode ser empregado com exclusividade pelo ficcionista. Invenções como “respondeu”, “explicou”, “concordou”, “replicou”, problematizou” etc., de largo uso e útil no texto jornalístico, constituem, entretanto, um problema na narrativa ficcional, pois logo transparece o tortuoso esforço do ficcionista de folhear as páginas do dicionário, e isso é muito suspeito para o leitor. A utilização do “dizer”, só ele, torna-se invisível no decorrer da leitura. Os olhos acostumam-se a ele e, a partir da página 5, ele “deixa de existir”. Autran Dourado, por exemplo, empregou em suas ficções, e toda vida, o verbo “dizer”. “E ninguém percebeu nada até hoje” — isso ele disse a um escritor em formação que, no século 20, desejava aprender com ele a técnica do diálogo).

6.
No parágrafo 2, viu-se que, mantida a fidelidade e a clareza, a escolha da apresentação gráfica do diálogo pode chegar a uma dezena de opções. A pergunta mais comum, redutora, contudo, é: “Uso travessão ou aspas?”. Para decidir, é bom ter em conta o seguinte: o travessão é um sinal horizontal, que se incorpora na linha, quase imperceptível, portanto. As aspas normais, como as estamos usando aqui, saem fora da linha, causando certo incômodo visual; se for um diálogo cerrado, de várias falas umas após as outras, passam ao texto uma trêmula inquietação, que fará o leitor piscar a cada segundo, e talvez não seja a melhor experiência de leitura. Além disso, se for necessário aplicar aspas para realçar ou especializar algum vocábulo ou locução, o leitor pode pensar que é fala e cria-se o problema.

7.
Ficcionistas jovens caem na naturalíssima tentação de inovar em tudo: inovar nas ideias, sim; é seu dever, espera-se que inove; caso contrário escreveríamos ainda como Homero; já inovar na apresentação gráfica do diálogo… — bem, é seu direito, mas não estarão acrescentando mais um problema para si mesmos? E pior, para seus leitores? Há um método que não falha: ao utilizar uma formatação extravagante ou mesmo inusual do diálogo, o ficcionista deve sempre se perguntar: “Eu leria este diálogo com desembaraço e prazer?”. Caso a resposta seja “não mesmo”, então que tal recorrer ao bom e velho travessão? Até hoje, na história da literatura, não se tem ciência de algum ficcionista que se tivesse arrependido de tê-lo usado em algum livro.

8.
Para encerrar: no parágrafo 1 dissemos que este é um pseudoproblema, e é de se imaginar que ficou demonstrado. Como pseudoproblema, deve ser colocado no seu devido lugar, que é secundaríssimo. O melhor é gastar energias com a composição do motor de qualquer narrativa, a personagem, e não com dúvidas pedestres sobre aspas ou travessões.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho