Elogio do pormenor

Focar o pormenor — não “os” pormenores — constituiu-se numa das melhores formas de captar o interesse do leitor
Ilustração: Bruno Schier
01/07/2021

1.
Na denominada Stanza della Segnatura do palácio Vaticano, há uma célebre pintura de Rafael Sanzio, que é comumente chamada de Escola de Atenas [o Google oferece a imagem em inúmeras definições, e, por isso, melhor é a de maior número de bits]. Ali estão representados os grandes filósofos da antiguidade grega e, no topo de uma escada majestosa, estão os dois grandes: Platão, que aponta para cima, para o mundo das ideias, e Aristóteles, que indica o chão, o mundo dos homens comuns. No primeiro plano, junto ao degrau inicial, há uma personagem, centralizada e isolada das demais: é o melancólico Heráclito, que escreve apoiado a uma mesa e, nessa mesa, figura um pequeno objeto circular, escuro, indefinido, mas que, ao ser visto mais de perto, parece ser um tinteiro. Há centenas de interpretações do que significam todos esses elementos pictóricos, mas aqui importa apenas a singeleza desse tinteiro – supondo que o seja –, o poder desse objeto, que estabelece um ponto de equilíbrio em toda composição, a qual é bastante tumultuada e algo anárquica. Depois que o espectador o descobre, não o pode mais ignorar, assim tal como acontece com a música com que acordamos e que nos acompanha pelo dia inteiro. A Escola de Atenas transforma-se nesse ponto escuro, ele é nossa segurança e a certeza da verdade de todo esse exemplar da pintura do mestre do Renascimento.

2.
Tal é na literatura, tal é na narrativa ficcional. Focar o pormenor — não “os” pormenores — constituiu-se numa das melhores formas de captar o interesse do leitor quando trabalhamos numa cena ou, mesmo, quando escrevemos um sumário que, por alguma circunstância, deva ser algo longo. Se é na cena, irá vitalizá-la com intensa presença, e não é isso mesmo que deseja o ficcionista, atrair o leitor para si? Como se falou em “pormenor” no singular, esse pormenor deve ser pontual e, talvez, irrelevante para a situação crítica apresentada. O tinteiro de Heráclito é um só, e suficiente. Pode-se imaginar o resultado catastrófico da mesma pintura se estivesse inundada de tinteiros, ou mais sutilmente, se tivesse, aqui e ali, uma taça, uma sela de cavalo, uma pilha de moedas, um vaso com rosas. A abundância de pormenores formaria uma composição caótica, pedindo paz ao olhar. Ficcionistas antigos enchiam suas cenas de tantos seres, animados ou inanimados, que tudo aquilo virava uma selva descritiva difícil de ser desbravada. A estética textual-narrativa e os leitores de hoje abominam essa conduta.

3.
Agora, o pormenor no sumário. Para já, leitores de hoje são muito impacientes com sumários, especialmente se forem longos, e assim as cenas são oásis no meio das narrações. Qual o problema do sumário? Antes de tudo, sua abstração e sua superficialidade. O mesmo com as reflexões. Quem quiser escrever uma reflexão deve levá-la para um ensaio, onde fica bem, poupando o romance disso. Mas então: caso for extremamente importante — difícil imaginar isso — o sumário estará a postos para enevoar qualquer narrativa. Neste caso, o pormenor não só ajuda, como é essencial para que o leitor seja ancorado à terra, escapando dos sortilégios pantanosos das imprecisões.

4.
(Não custa recuperar dois conceitos: na cena, a ação é apresentada em “tempo real” ao leitor, de modo que ele acompanha o movimento das personagens, suas falas são mostradas em estilo direto, aliás, as ações são mostradas. Há livros inteiros escritos somente em cenas, e aí temos para provar a novela Mulher no escuro, de Hammett. Já o sumário não mostra e, sim, conta algo, usando, portanto, estilo indireto, estabelecendo uma distância entre a narração e o leitor: “Era uma vez num reino encantado e nele vivia um rei…” Pensando em histórias infantis, elas começam quase sempre num sumário como esse, mas quando a história começa de fato, tudo é mostrado em cenas).

5.
Como funciona o pormenor na cena? A passagem é de um conto: “Passados anos, reencontraram-se, ela já formada e trabalhando, e ele, no seu dia a dia de pequenos serviços intelectuais, a que às vezes acrescentava algum outro, mais braçal. Combinaram: o lugar seria um restaurante. Ele chegou primeiro e pediu um prato que, ele lembrava, era da preferência dela. Ela chegou, vestida do seu modo sóbrio, e ele, bem à brasileira, esqueceu-se de se levantar. O garçom puxou a cadeira, ela se sentou e ele logo percebeu aquele olhar de sempre. O garçom trouxe o cardápio, e ela fez o pedido e, na carta de vinhos, ele fez a escolha. A conversa foi demorada e conclusiva, como ela esperava que fosse”. O amadorismo da narrativa da cena — cena que começa na terceira frase — chega a ser comovente. Imprecisões, coisas vagas, inocuidades do início a fim. Mas pode ser salva se o ficcionista escrever, em vez de: “ele fez a escolha”, por “ele escolheu um Malbec de Mendoza”. Este “Malbec de Mendoza” equivale ao cinzeiro de Rafael, ilumina a página e dá estabilidade e credibilidade ao conto inteiro.

6.
Como funciona o pormenor no sumário? A passagem é de um romance: “Todas as expectativas na vida de K. foram preenchidas, pois se formou cedo, começou a trabalhar e depois de um tempo, e porque o dinheiro era muito importante para ele, havia acumulado uma pequena fortuna, capaz de aposentá-lo aos cinquenta anos e ainda sobrar o suficiente para os dois filhos e três netos. Sua relação com a esposa nunca foi lá essas coisas, mas não se incomodava com questões existenciais. Quando houve a quebradeira geral dos bancos, ele foi capaz de perder tudo. ‘Pegue esta xícara, por favor’, disse o gerente do seu banco. ‘Daqui a pouco a Cláudia vem lhe servir o café, e então vamos conversar’. Era uma xícara branca, pretensamente rococó, feita em série. Uma semana depois, K. estava procurando um emprego, batendo de porta em porta dos amigos.” A observar que essa xícara, no meio de um indigesto sumário, mostra que o ficcionista não perdeu a mão de sua arte, e se colocou a xícara, foi de caso pensado; quando o leitor começa a bocejar, vem o Malbec, digo, a xícara. E o leitor passa a acreditar em todo o capítulo, talvez no romance inteiro, sempre estará à espera de que esse artifício aconteça de novo, para sua alegre surpresa.

7.
Não há muita diferença do uso do pormenor na cena e no sumário: a função é a mesma, tal e qual, só que, na cena, o pormenor torna-a mais vivaz e, no sumário, para quebrar longos trechos e validá-los. A distinção foi feita apenas para mostrar que a técnica funciona em qualquer caso.

8.
A dedução do que foi dito no parágrafo 2 é que o iniciante não deve alvoroçar-se em gastar esse recurso, multiplicando-o, causando uma devastação estética. A questão não respondida, porém, é: qual o pormenor mais eficaz a ser inserido na narrativa, para dar força e substância a um momento impreciso? A resposta, simples, é a seguinte: qualquer um. O que evitar? Os pormenores “falantes”, isto é, aqueles que são símbolo ou chave para o andamento ou elucidação da história; assim, se a personagem pensa em suicídio, o que jamais pode aparecer é um revólver ou um frasco de soporífero — esse seria um procedimento indigno de um ficcionista profissional; o escritor, mais do que todos, tem o dever de exercer sua generosidade para com o leitor e, assim sendo, faz todo o sentido colocar apenas uma xícara na mão da personagem.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

Rascunho