Contar no passado, contar no presente

As possíveis armadilhas e riscos de se usar o tempo presente em narrativas de fôlego
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/06/2022

1.
O título esclarece que não se trata do tempo em que transcorre a novela ou o conto, nem irá nos levar a assunto já tratado nesta coluna, qual seja, os diferentes momentos temporais da narrativa. Tampouco é uma reflexão de natureza linguística, mas, muito simplesmente, uma consideração acerca do tempo verbal utilizado pelo escritor quando vai contar suas histórias.

2.
“No presente ou no passado?” é pergunta recorrente em classes de escrita literária. A resposta não é simples, pois envolve a intuição do ficcionista. Uma história pode começar com “Abriu a porta de casa e encontrou um cadáver no tapete” ou “Abre a porta de casa e encontra um cadáver no tapete”. Hoje em dia, em que a quase totalidade das narrativas é escrita em primeira pessoa, a escolha, antes importante, torna-se crucial, pois faz imensa diferença entre “Abri a porta de casa e encontrei um cadáver no tapete ” e “Abro a porta de casa e encontro um cadáver no tapete”. Veremos isso mais apuradamente no parágrafo 6.

3.
Melhor por partes: o tempo verbal passado foi sempre “o” tempo em que as histórias eram contadas, seja oralmente, seja na forma escrita. Embora os ouvintes da Ilíada se empolgassem até os dentes com o ódio de Aquiles, e não estivessem muito preocupados com o tempo, “sabiam” que a história já acontecera, então era natural que Homero, ou alguém por ele, usasse o pretérito. Aliás, todas as histórias já tinham acontecido. Por isso é possível dizer que o passado, em seu aspecto perfectivo, foi tempo por excelência das narrativas, e usar o presente do indicativo, nesse contexto, seria coisa bizarra.

4.
Com a sofisticação da literatura, com os novos modos de encará-la, com as experiências formais e com a imaginação dos ficcionistas, o presente, que emergia aqui e ali com a finalidade de intrigar o leitor, passou a existir como consolidada experiência autoral. Então: se o uso do pretérito é coisa assentada nas narrativas literárias e, portanto, “automática”, o presente já não o é. O presente precisa ser escolhido pelo ficcionista. Por isso a pergunta “presente ou passado?” apenas surge quando o ficcionista pensa no tema.

5.
Se acerca do uso do pretérito muito já se disse, é preciso olhar mais de perto o uso do presente. Para já, é relevante ir à raiz do problema: o porquê de o ficcionista fazer-se a pergunta. Alguma sedução terá o presente, e a mais citada é: com perdão da tautologia, o presente “presentifica” a ação. Como aparece de preferência em cenas — embora eventualmente possa estar em sumários — ex.: “Cada dia ela abre a caixa do correio, saúda o porteiro, dá uma corrida de 30 minutos, toma banho, veste-se e vai ao trabalho, entedia-se por lá e aguarda a noite com ardor” — o recurso do presente faz com que a ação decorra perante os olhos do leitor “em tempo real”. O leitor “acompanha” as ações da personagem como se esta atuasse num palco ou num filme. Outra razão para o tempo presente tentar o ficcionista é quando este quer marcar diferença entre momentos cronológicos da narrativa; assim, a ação “atual” é contada no presente, e a passada, no pretérito. Nada contra nem e nem a favor, é apenas uma inutilidade, pois, quando a narrativa é bem estruturada, o leitor jamais irá confundir-se.

6.
Parece que a maior razão para o uso do presente está na ilusória liberdade dada à personagem, como se ela ganhasse o direito de autogovernar-se. Trata-se de uma balela, mas balela interessante. A frase vista no parágrafo 2, “Abre a porta de casa e encontra um cadáver no tapete”, insinua que a personagem tem mais escolhas do que irá fazer a seguir, chamar a polícia ou sorrir com cumplicidade ou esconder o cadáver ou desmaiar, sair gritando porta afora. Já o tempo passado, entretanto, diz ao leitor que a personagem tem seus caminhos anteriormente delineados pelo ficcionista, que os irá revelar aos poucos ao leitor, que, dessa forma, tem uma atitude passiva; neste caso, a participação do leitor é menos exigida. O uso do presente, assim, não é mero recurso retórico-ficcional.

7.
Assentado que o uso do presente é uma decisão, chegou a hora de considerar suas armadilhas. Não pretendemos estabelecer hierarquia entre elas, mas destacar as que aparentam ser as mais relevantes.

8.
Risco da monotonia: se o leitor adere com alvoroço ao presente, na mesma medida cansa-se dele, caindo numa espécie de torpor em que a narrativa parece atingida de anemia literária. Pensando em Sartre, de que somos condenados à liberdade, a “liberdade” da personagem, derivada do uso do presente, faz com que realize ações supostamente aleatórias, e causa fadiga dar-lhes sentido. O texto, em si, não é cansativo, mas o leitor se cansa porque o presente exige sua ativa e permanente participação.

9.
Risco do uso reiterado de frases declarativas. É uma fatalidade. “João entra em casa e encontra um cadáver no tapete.” Depois viria, por exemplo: “Passado um momento de paralisia, pega o celular e chama a polícia. A polícia chega em vinte minutos. O inspetor, com ar desconfiado, pergunta se João está ali há muito tempo” — e assim por diante. Por um processo inexplicável, o ficcionista, usando o presente, tem a tendência a usar sucessivas frases declarativas. E isso gera uma atroz monotonia e, logo, o desinteresse do leitor. Arriscando uma experiência de transposição para o pretérito, é bem provável que surgisse uma composição frasal mais complexa: “Logo que viu um cadáver no tapete de sua sala, João paralisou-se, mas vencido esse momento, ligou para a polícia, que chegou em vinte minutos. ‘Você está aqui há quanto tempo?’, disse o Inspetor, desconfiado”. A incidência, aqui, fica no que interessa: a desconfiança do inspetor, que abre ótimas possibilidades de conflito. Claro que isso poderia ser narrado no presente, mas só depois de um processo mental que tem o seu quê de coisa construída e, no qual, por suposto, haverá perdas de significado.

10.
Para ficcionistas que iniciam, não será má ideia decidir previamente o tempo verbal que dominará a narrativa. Para evitar as armadilhas, melhor será utilizar o passado, que é nosso conhecido há dois milênios. Com ele, podemos realizar com segurança todas as intenções autorais. Quando se sentir habilitado, poderá ser o momento de tentar o tempo presente, e mesmo assim, numa narrativa ou fração bem curta. Num romance, não haverá leitor com suficiente paciência.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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