A vocação literária

Só o amadurecimento pessoal e literário fará com que o escritor entenda a si mesmo e entenda a dimensão de sua obra
Ilustração: Marcelo Frazão
02/08/2022

1.
Dada como elitista e indulgente, quando não, beletrista, a palavra talento, que tantos estragos e incompreensões tem gerado, melhor substituí-la por outra. Vocação apresenta as melhores condições para isso, com sua acepção mais simples de disposição pessoal para certa atividade.

2.
Embora aconteça, via de regra, na juventude e, até, na infância, essa disposição pode revelar-se na idade madura, e, muito excepcionalmente, na idade “avançada”, tal como em Cora Coralina e Pedro Nava; mas se atentarmos bem para os aspectos biográficos desses últimos, veremos que nunca a literatura lhes foi estranha até então, e esse é um ponto que não pode ser descuidado ao avaliar-se o fenômeno de vocações tardias.

3.
A vocação literária manifesta-se quando se mostra insuficiente a expressão por escrito, se destinada apenas à comunicação prática. E por que esse fenômeno acontece com algumas pessoas, e não com outras? Sem entrar em discussões, temos de aceitar, inicial e candidamente, sua existência. Mas é existência precedida de um processo, ou, se quisermos, de uma educação. Pedro Nava e Cora Coralina foram leitores desde crianças. O fato é que, em determinado ponto da vida, em geral no início da formação escolar, e porque isso nos foi ensinado, descobrimo-nos pessoas capazes de ler e escrever, e assim destapa-se um universo que pode levar à simples prática utilitária ou, mais raramente, ao uso da escrita como elemento simbólico de outras realidades, quase sempre inalcançáveis. Atente-se para a díade: ler-escrever. Escrevemos porque lemos, e na escola não faltam estímulos à leitura, nem em muitos lares. Quanto mais aprofundamos a questão, entretanto, mais surgem interrogações: por que a leitura fascina alguns alunos e aborrece a outros? Se o fascínio pode levar ao escrever, o aborrecimento é estéril. Essas platitudes levam-nos a nada, e, por isso, melhor deixá-las.

4.
Com o que foi dito, e como tentativa de solução do impasse, retoma-se o afirmado no parágrafo anterior: dizemos que Fulana tem vocação literária; e tem-na porque escreve com eficiência e originalidade. Não lhe falta imaginação, nem os meios aprendidos para expressá-la. Fulana interessou-se em aprender esses indispensáveis meios, e assim procedeu porque desejava escrever de maneira a que seus leitores se encantassem com sua literatura.

5.
Bom esclarecer que a vocação não é “para sempre”, nem que mantém a mesma intensidade no decorrer de uma vida. Ela está sujeita a aumentar ou diminuir sua força, e até desaparecer, para depois retornar ou perder-se para sempre. Isso explica a alternância qualitativa de certas produções literárias, inclusivamente em obras de nomes canônicos, como Balzac ou Flaubert, Dostoiévski e Machado, Eça.

6.
[Nesse ponto entra o juízo alheio, quase sempre sentencial, que projeta o vocacionado a um locus horribilis ou, ao contrário, eleva-o a um êxtase orgiástico. Só o amadurecimento pessoal e literário fará com que o escritor entenda a si mesmo e entenda a dimensão de sua obra, e essa consciência o conduz a um patamar em que não está mais sujeito a supervalorizar as opiniões dos outros e — fenômeno do espírito do tempo — nem à necessidade infantil de fazer reiterada propaganda de tudo o que lhe acontece, como se isso importasse a todo mundo.]

7.
Aceita sua existência, fiquemos pelos efeitos da vocação literária. Antes de tudo, o “viver para escrever” é fonte de fruição sensorial, de tal maneira que a pessoa não consiga fazer nada mais com gosto nem concentração total. Não é algo que possa ser realizado nas sobras das horas, nem apenas nos fins de semana. A tentativa de harmonizar isso tudo leva à tristeza e ao desânimo e, em casos mais graves, ao abandono. “Viver para escrever” é encontrar prazer apenas na escrita, à medida que os outros prazeres intelectuais ou laborais se tornam pálidos e insatisfatórios hologramas. O escritor não escreve para ornamentar sua biografia nem ascender na consideração do meio social a que pertence. Não escreve para deleitar-se com suas obras, porque as entende sempre como capazes de melhora. Seu estado habitual é a insatisfação.

8.
A vocação literária é exigente. Cada livro é uma tentativa de alívio que não acontece.
Retomando o visto no parágrafo 5, ela demanda não apenas dedicação irrestrita, mas também ações assertivas para que não sofra as intercorrências que a podem diminuir ou dá-la por extintas. Dentre essas ações, a principal é a leitura constante e ininterrupta. Mas atenção: devemos ler apenas quem escreve melhor do que nós; ler obras amadoras, além que agastar nossos humores, pode ser um mal contagioso. A segunda ação implica o escrever diário e concentrado. As intermitências na escrita podem, pouco a pouco, extinguir qualquer vocação literária. A terceira ação é fornir-se com o conhecimento integrado da ciência e da arte, o qual pode ir desde as montanhas da Lua à arquitetura das catedrais românicas; caso contrário, o escritor esgotará logo seu repertório de motivações. Não se trata de conhecer por conhecer — isso o Google faz por nós — mas de integrar esse conhecimento às nossas experiências vitais e emocionais.

9.
Se alguém pensar que se está a sugerir obediência a regras tão estritas quanto as que ordenam a vida dos monges cartuxos de São Bruno, está certo. Uma diferença: os monges acreditam mais em suas vocações do que os escritores. No primeiro caso, há a garantia da luminosa vida depois da morte, cercada pelo coro dos querubins; no segundo, não há garantia de nada. Não existe uma entidade superior que pavimente o caminho que tanto pode conduzir ao prêmio Nobel quanto a livros atulhando depósitos ou esquecidos nos recônditos da internet. Eis aí o real problema, e insolúvel.

10.
Não se pode eliminar, ou fingir que não existe, a necessária luta pela vida. Há profissões, ou melhor, atividades, que ocupam as 24 horas do dia; há as que ocupam menos, há também as que permitem bons espaços de lazer intelectual e de exercício da sensibilidade. Em todo o caso, deve-se assumir sinceramente: o melhor de minha capacidade intelectual e de meu tempo será dedicado à literatura. Já o resto, o resto farei com sensibilidade e empenho.

11.
Uma vocação situa-se muito acima de uma simples tendência ou de um gosto. Se isso nos levar a uma encruzilhada dramática, bem, teremos de enfrentá-la. Assim, e mais uma vez, voltamos aos efeitos e ações, que partem da única certeza do escritor: saber-se vocacionado, detentor de uma qualidade exclusiva. O que ele escrever só ele poderá fazê-lo daquela forma. Isso não é pouco. Isso ninguém lhe tira.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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