A ideia da narrativa

Se os escritores soubessem, sempre e claramente, de onde vêm suas ideias, talvez deixassem de escrever, por medo de si mesmos
Ilustração: FP Rodrigues
01/02/2022

1.
Uma das mais vertentes questões trazidas a uma sala de aula de criação literária, e incontornável, é a seguinte: de onde surge a ideia de um conto, de uma novela, de um romance? A resposta mais decente seria: não se sabe. A resposta “mais decente” assim deve ser considerada porque as outras, as menos decentes, são aquelas que trazem afirmativas categóricas e, portanto, sob suspeita. Neste artigo, vamos deixar de lado essas últimas, mas também não desejamos declarar nossa ignorância, pois o leitor, atraído pelo título, pode sentir-se enganado.

2.
Para que possamos refletir sobre esse assunto, é preciso desde logo apartar as águas: a um ficcionista vocacionado para uma história de longo curso, suas ideias serão quase sempre de uma novela ou de um romance; se é vocacionado para o conto, suas ideias terão a dimensão e o propósito de um conto, e aqui não cabe mais uma vez distinguir essas formas entre si, pois isso é do conhecimento geral, e esta coluna tem versado sobre o tema. Quer-se dizer: os impulsos genéticos são diferentes. (Não é de todo irrelevante lembrar que, hoje em dia, em nosso país, os ficcionistas “especializaram-se”, e, ao contrário do século 19 e da primeira metade do século 20, esses autores intitulam-se, tout court, de “contistas”, ou “romancistas”, sendo poucos, pouquíssimos, os que praticam com êxito os dois gêneros. Felizmente já pertence ao passado [recente, mas passado] o pensamento que via o conto como estágio preliminar para o romance, uma espécie de degrau a ser percorrido pelo escritor. Equívoco. Hoje o contista não vê problema algum em sê-lo por toda a vida.)

3.
Considerando-se a aposta do conto contemporâneo na sua força instantânea [vamos agradecer e aposentar as deliciosas fantasias de Edgar Allan Poe, em A filosofia da composição], pode-se dizer que esse conto trabalha com momento privilegiado do quotidiano e é tão cifrado quanto uma inteligente anedota, aquela de que se ri apenas dois dias depois, quando a “entendemos”. Às vezes, esse gênero de conto pode ser apenas uma frase, como o célebre “E quando acordou, o dinossauro ainda estava ali”, de Augusto Monterroso, mas é típico que seja um pouco maior. Neste caso, torna-se natural que ele brote — ou que sua ideia surja — de um episódio também instantâneo, ou de uma contemplação fugaz de uma pessoa, de um objeto. Não podemos dizer qual ideia deflagrou o conto de Monterroso, mas poderá ser um dinossauro de brinquedo infantil, ou uma pessoa que dorme e acorda, ou nada disso. Assim, é mais fácil compreender que o conto de que falamos possa ter seu impulso genético numa impressão muito simples e emergente. É bom, contudo, sublinhar que nem todo conto de nossos dias é breve. Se pensarmos na prêmio Nobel Alice Munro e seu livro Amiga de juventude, vemos que o volume reúne contos que, por sua extensão, podem ser considerados pequenas novelas, tal como os do século 19; mas Munro, nesse panorama, é exceção.

4.
A novela que, ao contrário do que muitos dizem, não é um “conto espichado”, pois implica uma história em que, partindo de uma ideia única, desenvolve-se em forma de história com começo, meio, fim, e aí estão A hora da estrela, de Clarice Lispector, A fera na selva, de Henry James, ou A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói. A ideia é um foco único, perseguido desde a primeira linha. Digamos: quando o novelista pensa na sua história, esta será extremamente concentrada, mas com um desenvolvimento perceptível e alterações da personagem central acerca do conflito.

5.
Se pensarmos no romance, a questão muda de figura. Por sua complexidade, que implica várias tomadas de decisão, é concebível que a ideia, ainda que instantânea, seja bem mais embrionária, e não basta por si só; é necessário, para que se mantenha em pé como romance, que admita várias pequenas ideias que se organizam em forma sistêmica, catalisadas por uma personagem que “cria” e dá sentido à história. A esta forma poder-se-ia chamar de “geleia geral”, a que nos propomos caracterizar no seguinte parágrafo. A “geleia geral”, com licença de Décio Pignatari, significaria uma ideia de narrativa que, partindo de um ponto quase sempre situado no subconsciente, acaba por gerar outros pontos — outras ideias — conexas com essa primeira, e então a tarefa do ficcionista é verificar em que medida essas outras ideias de fato são úteis àquela primordial. Com isso, acaba-se formando uma estrutura que não é totalmente estável, que sofre aumentos, reduções, etc., bem uma geleia, e que busca estabilidade. Mas se no poema Pignatari diz: “Na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e de osso”, no romance essa “medula e osso” é a ideia original, provinda da capacidade criativa do autor. Certamente a ideia original de Tolstói para Guerra e paz foi a de escrever um livro que tivesse como foco a História russa, especialmente no período da invasão napoleônica; a partir daí, fácil é imaginar, surgiram-lhe outras ideias, menores, todas conectadas, como, por exemplo, a percepção da guerra a partir de cinco famílias russas. Isso gerou uma constelação de ideias convergentes que fizeram sentido. O resto foi uma questão de decidir acerca da estrutura, e aqui entra a competência e o labor autoral. Não seria de todo herético incluir na mesma lógica o Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, ou O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Ambos, se for possível afirmar sem muito erro, tiveram a mesma ideia: a de apresentar um painel da formação histórica das respectivas regiões, incluindo, neles, histórias particulares.

6.
As três modalidades de ideias: para conto, para novela, para romance — para ficarmos apenas na narrativa, que tem sido a tônica desta coluna — apresentam, portanto, circunstâncias genéticas diferentes, e aqui cabe reiterar que a “resposta decente” do primeiro parágrafo leva-nos a uma impossibilidade; teria tantos senões e entretantos que inviabilizaria dizer algo razoável. E assim, depois desses argumentos, voltamos ao ponto zero.

7.
Aos iniciantes, o melhor conselho será: não se deixe ocupar com esse problema espectral e acessório; delegue o assunto para os filósofos, os psicanalistas, os psicólogos e intelectuais de disciplinas afins. Ademais: se os escritores soubessem, sempre e claramente, de onde vêm suas ideias, talvez deixassem de escrever, por medo de si próprios.

Luiz Antonio de Assis Brasil

É romancista. Professor há 35 anos da Oficina de Criação Literária da PUC-RS. Autor de Escrever ficção (Companhia das Letras, 2019), entre outros.

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