O ano que nunca existiu

Para mim, 1994 é apenas uma cicatriz aberta, por onde sangram um livro de capa vermelha e dezenas de outras ausências
Ilustração: Raquel Matsushita
02/11/2020

Tenho obsessões. Ou seriam simples manias? Algumas delas me causam constrangimentos. Busco suas origens para identificar onde nasce o inimigo. É uma busca cega, um mergulho num mar em permanente revolta. Sou abstêmio há vinte anos. Algo a causar espanto aos desavisados. Não é obsessão. É apenas uma frágil estratégia para esticar um pouco a permanência que me resta. A distância do precipício traz calmaria. A agitação do corpo — encharcado pelo álcool no réveillon — não me sufoca no ano-novo. Estou insanamente sóbrio. A letargia da farra dilui-se na minha indiferença. Nada borbulha além da opaca expectativa pelos próximos trezentos e sessenta e cinco dias. Então, encontro o livro de capa vermelha (já meio desbotada) e o leio em duas longas golfadas — uma pela manhã; outra, à tarde. As inevitáveis perguntas: “Por que este livro?; O que tem de tão interessante?; Você não cansa de ler sempre o mesmo livro?”. Hoje, ainda mais recluso, distante de ruidosas aglomerações, a curiosidade é irrelevante. As poucas pessoas do meu convívio respeitam as minhas estranhezas.

Foram algumas leituras: vinte nos últimos vinte anos. Sempre no primeiro dia de janeiro. Troco a certeza de mantras, superstições, promessas, grãos de uva, pulos nas ondas do mar, pelas dúvidas a perpassar a história do casal numa tensa relação: ela, uma jovem idealista; ele, um homem de meia-idade a esperar que o reduzido mundo ao redor o acolha e entenda. O embate é inevitável.

A magra e vermelha narrativa abre a lista anual de leituras. Uma das tantas obsessões. Desde 1993 — nos meus longínquos vinte anos de idade —, registro todos os livros lidos durante o ano. Algo bastante simples: o número, o título em negrito e o autor. Tudo em letra minúscula. (faço o mesmo com os filmes assistidos.) Arrasto estes arquivos de computador a computador como um móvel de estimação a percorrer gerações de uma nobre família. Minha memorabilia não passa de um amontoado de letras. Agora, estão num arquivo online, em algum lugar desconhecido. Talvez nas nuvens ao lado de Deus — querubins falsificados a espetar a paz celestial.

(Charles Babbage e Alan Turing pensavam em Deus ou no demônio enquanto despejavam genialidades em suas criações?)

Mas há tempos algo me incomoda. Uma falha em minhas inofensivas insanidades. Uma greta escancarada diante de meus olhos míopes e daltônicos. E também doentes: há um ano, venho perdendo a visão do olho direito. Na biblioteca doméstica, serei um Borges analfabeto. A ausência no início da lista tira-me a paz inexistente. Um pequeno salto, uma fissura, na mania que inventei para existir. Nas listas estão aprisionadas histórias que me acompanham — autores e livros da minha vida. Alguns não deixaram marca alguma. Outros cavaram cicatrizes incuráveis. A tempestade pode inundar minha biblioteca. O fogo, consumi-la em minutos. As traças assassinas, devorá-la. Os livros podem tomar o caminho do sumidouro das palavras perdidas. Mesmo assim nada será capaz de me roubar as obras lidas, suas histórias, personagens, silêncios e assombros. Apenas a travessia pelo rio Hades, evidentemente, eliminará todas as possibilidades.

No alto, a fenda por onde entra uma luz negra, uma réstia vazia. O ano de 1994 sumiu. Sem rastro, nenhuma pegada no deserto solitário das leituras. A única certeza: li o livro de capa vermelha naquele ano. Mas o que aconteceu na minha vida? Volto às listas com certa frequência. Abro um ano qualquer e passeio pelos títulos e autores. De alguns, a lembrança é nenhuma. De outros, certa emoção me atira novamente a épocas passadas. Minha máquina do tempo move-se aos solavancos. O tempo não passa no rosto vincado, onde sulcos começam a esburacar a pele, nem nas dores no ciático (este monstro que, às vezes, me tira o pouco sono), mas nas entrelinhas de personagens que atravessam meu caminho.

O atacante baixinho fez um gol. Fez vários gols em parceria com um magrelo mais esforçado que talentoso. Havia homens pulando em volta de um campo de futebol. Homens grandes saltitando de alegria feito crianças. Depois, suados, sujos, estropiados, levantam uma taça. Estão muito felizes. As imagens são nítidas. Muita gente nas ruas. Somos campeões do mundo. Os gritos volteiam pelas cidades, pelo país, pelo mundo. É um ano inesquecível. Mas também houve muita tristeza. Uma manobra e a morte. A batida violenta contra o muro na curva assassina. O choro é inevitável. Lamenta-se a morte de um gênio das pistas. Eu não chorei. Não gosto de chorar por desconhecidos famosos. Outros morreram: o compositor da Bossa Nova e o humorista trapalhão. Gostava de ambos. Mais do trapalhão. Obviamente, muitas coisas aconteceram naquele ano.

Mas, para mim, 1994 é apenas uma cicatriz aberta, por onde sangram um livro de capa vermelha e dezenas de outras ausências.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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